Com
este texto, inauguramos a série de reportagens sobre a verdadeira história da
crise de falta de água em São Paulo. É o quarto projeto financiado pelos
leitores do DCM através de crowdfunding no site Catarse. O repórter Pedro
Zambarda de Araújo está apurando o caso. Fique ligado.
Uma denúncia é investigada no Ministério Público do Estado de
São Paulo desde novembro de 2014. O autor é ex-funcionário da Sabesp na Unidade
Norte e hoje atua como prestador de serviços de uma empresa ligada às
terceirizadas de seu antigo emprego. “Esta é uma prática usual na empresa, de
forma que os nomes de ex-funcionários não aparecem nos contratos”, diz o
documento.
“Várias ações fraudulentas são praticadas em licitações de
companhias de saneamento, como Dae, Saae, Sabesp e tais ações são de
conhecimento geral de empresas e pessoas que atuam nesse mercado”. De acordo
com o ex-funcionário, é inusitado como a polícia, a mídia e o ministério
público não tiveram ciência de tais eventos, que ele define como uma formação
de máfias de empresas marcadas nos setores de controle de perdas de água,
esgoto, serviços de manutenção, métodos não destrutivos e equipamentos.
“As empresas que não compõem o grupo da máfia só ganham
licitações onde não são exigidos profissionais nível 2 e 3, pois a certificação
de nível 1 é a que coloca menos dificuldade. Mas considerando que o grupo
direciona 90% das licitações com ajuda de superintendentes e do diretor Paulo
Massato, que é amigo pessoal dos diretores dessas empresas, a certificação
nível 1 não adianta para companhias iniciantes”, frisa a denúncia entregue ao
ministério público.
Paulo Massato Yoshimoto foi o homem que admitiu em uma
gravação vazada que a situação de abastecimento da capital paulista é de
“agonia” se as chuvas de 2015 repetirem o clima seco de 2014. “Saiam de São
Paulo porque aqui não vai ter água”, sugere numa reunião.
A denúncia anônima liga Massato a uma associação com
integrantes de empresas que venceram 38 licitações dentro da Sabesp em pesquisa
de vazamentos, um dos maiores problemas na queda do nível do Sistema Cantareira
atualmente, com a diminuição da pressão hídrica que aumenta o desperdício de um
recurso que está se tornando escasso.
O grupo, acusado no documento como uma máfia, uma formação de
cartel de empresas selecionadas, chama-se Associação Brasileira de Ensaios Não
Destrutivos (ABENDI).
O que há de errado dentro da associação?
A ABENDI se define, em seu site oficial, como “uma entidade
técnico-científica, sem fins econômicos, de direito privado, fundada em 1979,
com a finalidade de difundir as atividades de Ensaios Não Destrutivos (END) e
Inspeção, preservando a vida das pessoas e o meio ambiente”. Na internet, não há
informações de quem ocupa a diretoria e os principais cargos da associação.
O documento anônimo enviado ao ministério público aponta que
nove membros da comissão da ABENDI são diretores de empresas vencedoras das
licitações contra vazamentos da Sabesp. Da BBL Bureau Brasileiro temos Nicolau
Sevciuc e Rodrigo Augusti, enquanto Carlos César Gurnier representa a Sanit
Engenharia e Serviços. No arquivo estão também Carlos José Teixeira
Berenhauser, da Enops Engenheria; Eduardo Augusto Ribeiro Bulhões Filho, da
B&B Engenharia; João Augusto Sanches Alves, da Opertec Engenharia; Ramon
Velloso de Oliveira, da Cobrape Companhia Brasileira de Projetos e
Empreendimentos; Renato Gomes Dias, da Estudos Técnicos e Projetos ETEP; e, por
fim, Rubem da Costa Júnior, da Restor Manutenção de Equipamentos
Eletromecânicas.
A reportagem do DCM apurou na internet o currículo de cada um
dos engenheiros. Todas as empresas listadas pelo documento foram vencedoras das
licitações de pesquisas para vazamentos de águas da Sabesp, o que tiraria a
independência da ABENDI como órgão regulador ou de inspeção.
No caso do escândalo da Petrobras, por exemplo, ela recebe
auditoria da PricewaterhouseCoopers (PwC) e também é regulada pela Agência
Nacional de Petróleo (ANP). Nenhuma destas instituições possui membros com o
nível de conflito de interesses que envolve a ABENDI e a Sabesp até o momento.
O MP cobrou explicações das oito empresas acusadas de
possuírem conflitos de interesses dentro da ABENDI. Carlos Berenhauser,
engenheiro da Enops e um dos acusados, respondeu que “participa como membro do
comitê setorial de saneamento, mas isso não lhe confere nenhum poder de
influência nos resultados das provas desenvolvidos pela entidade para
qualificação de profissionais”.
Outras empresas disseram que não participam de nenhum conluio
ou cartel, e reafirmaram que cumpriram os objetivos das licitações. Uma nona
empresa, chamada Jobs Engenharia e Serviços, afirmou em documento que já foi
recusada três vezes pela ABENDI e venceu apenas um dos pregões, defendendo a
atuação da associação.
Se a empresa de um dos membros de sua comissão vence a
licitação, existirão interesses econômicos em jogo maiores do que os critérios
técnicos para lidar com a redução de perdas de água dentro da Sabesp. Esta
irregularidade grave se conecta com um escândalo maior dentro da própria
empresa de capital misto que é controlada pelo governo do estado de São Paulo.
Contratos de R$ 1,1 bilhão sob investigação
A
Sabesp instaurou um Programa de Redução de Perdas da Sabesp, entre 2008 e 2012,
sob o custo de R$ 1,1 bilhão em contratos. A atitude foi resultado de alertas
desde 2003 que apontavam para uma estiagem forte na região sudeste e uma
previsão catastrófica para 2010. A informação foi veiculada no jornal Folha de
S.Paulo e não se concretizou naquele ano, mas está para acontecer em 2015.
Por este motivo, a empresa lançou este plano de manutenção de
suas reservas hídricas e fez um investimento monetário em quatro anos. O
problema é que o programa foi implementado financeiramente e a Sabesp continua
a desperdiçar 36% de toda a água captada nos mananciais em seus canos. Parte
das vegetações também foi devastada, o que aumentou os efeitos da maior
estiagem na região sudeste brasileira dos últimos 45 anos.
Em 2013 foram perdidos 924,8 bilhões de litros, quantidade
equivalente à capacidade máxima do sistema Cantareira, que atualmente está em
5% do seu volume morto. Para ter uma idéia, 623 bilhões de litros de água
seriam suficientes para abastecer uma cidade com 685 mil habitantes, como Osasco,
o sexto município mais populoso de São Paulo. As perdas de 2014 estão estimadas
em uma quantidade maior, mas os dados não estão fechados.
A
revista Carta Capital informou
que o ministério público passou a investigar a Sabesp em maio de 2014, para
verificar onde foi parar o investimento bilionário que deveria estancar perdas
hídricas e aumentar a eficiência do serviço. A investigação segue até agora.
A
empresa foi privatizada ao longo do segundo mandato de Fernando Henrique
Cardoso e abriu capital em 2002 na bolsa de Nova York. Mesmo com a falta de
água crescendo em São Paulo, a Sabesp é uma das maiores pagadoras de dividendos
dos últimos seis anos, com rendimento em média de 4,9% ao ano em 2013. O
sistema Cantareira é responsável por 73,2% da receita bruta operacional, o que
revela uma total incapacidade da companhia em pagar bem os seus investidores
privados e não retardar uma crise anunciada na sua maior reserva hídrica.
O encontro entre dois
escândalos
O
Ministério Público fez uma denúncia formal contra 25 pessoas acusadas de
participação em fraudes de licitações no Serviço Autônomo de Água e Esgoto
(Saae) da cidade de Sorocaba e em outros locais no Brasil, que não são
abastecidos pela Sabesp. A operação foi batizada de Águas Claras, iniciada em
2012 e deu origem a um inquérito de 60 volumes entregue em janeiro de 2014.
A suposta fraude dentro da Saae ocorria na forma de pagamento
de propinas entre as empresas, segundo a investigação. Uma empresa chamada
Allsan teria coordenado os desvios com outras 29 desde 2007, resultando em
outro rombo de R$ 1 bi. A Polícia Civil participou ativamente na apuração das
denúncias.
As empresas citadas na Operação Águas Claras são sete que
compõem a ABENDI: Enops, Sanit, Restor, BBL, Opertec, Cobrape e Etep. Na mesma
investigação entram também OPH, Sanesi Engenharia, Ercon Engenharia e Enorsul
Saneamento. Por fim, a empresa Job Engenharia, que se defendeu do Ministério
Público em um documento, também consta na investigação de Sorocaba. Há
gravações telefônicas registradas na investigação com acusados acertando a
combinação de preços para vencer licitações.
Os escândalos da Saae e da Sabesp podem ter relação porque
envolvem as mesmas empresas e outras companhias relacionadas à ABENDI, que
deveria selecionar criteriosamente as companhias responsáveis pela contenção de
perdas e tratamento das reservas hídricas. Os dois casos podem somar quantias
bilionárias relacionadas com práticas de corrupção por dentro de empresas
responsáveis pelo fornecimento de água e saneamento.
Dentro da Sabesp
O DCM entrou em contato com Renê dos Santos, presidente do
Sindicato dos Trabalhadores da Sabesp. “Os funcionários pedem contratos que são
estabelecidos com empreiteiras e a empresa não é transparente e não nos
fornece. Há rumores que são ouvidos dentro da empresa de uma ‘indústria do
vazamento’, mas nós, como trabalhadores, não temos acesso aos documentos que poderiam
esclarecer sobre a real situação da companhia”, explicou.
“Os rumores de empresas ligadas a diretores da Sabesp existem
desde antes da crise hídrica do sistema Cantareira. A falta da água aumentou a
pressão em cima dessas denúncias. O que temos são algumas investigações do
ministério público, sendo que uma delas envolveu até a equipe de comunicação da
Sabesp. Não sei que fim levou isso”, disse o sindicalista. Para ele, a crise é
uma oportunidade para tentar reformar a empresa.
O sindicato teme que a Sabesp passe por uma reestruturação
forte após o período do Carnaval, o que pode acarretar muitas demissões e
poucas contratações. “Essa seria uma ação muito prejudicial para lidar com a
crise atual, quando a empresa mais precisa de pessoas para cuidar do
abastecimento. Precisamos de mão-de-obra operacional, enquanto os grandões
aposentados nunca são mexidos”, disse Renê Santos, que também mencionou atrasos
de até 80 dias da companhia para explicar os locais em que falta água ao
público por pura falta de transparência.
Renê Santos deu uma pista de quem pode estar fazendo
denúncias anônimas ao ministério público e entregando empresas que supostamente
participam de conluio e diretores que são complacentes com este tipo de crime.
Ele relembrou o áudio de Dilma Pena que vazou em outubro de 2014 revelando que
“ordens superiores” impediram a divulgação da situação real das reservas da
Cantareira para não prejudicar a reeleição do governador Geraldo Alckmin.
“Essas denúncias anônimas são levantadas geralmente por
ex-diretores da Sabesp que de alguma maneira foram desligados de seus cargos. O
problema é esse, porque geralmente eles são poupados e têm acesso direto aos
documentos. Nós, trabalhadores de baixo, não temos acesso a isso e a Sabesp não
tem a abertura que uma empresa pública deveria ter”, completou.
Novas investigações
Em outra apuração separada, o ministério público também irá
verificar o investimento de R$ 300 milhões feito pela Sabesp em obras emergenciais
nas cotas do volume morto do sistema Cantareira, que secará com a baixa
captação da água de chuvas.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi aberta na
Câmara Municipal de São Paulo em agosto de 2014. O atual presidente da Sabesp e
sucessor de Dilma Pena, Jerson Kelman, será convidado para depor sobre o caso.
Os investimentos da Sabesp em pesquisa de vazamentos e
medidas emergenciais sem efeitos concretos podem ter gerado um desvio de até R$
1,4 bilhão, valor que pode ter escoado entre as empresas envolvidas diretamente
em todo processo. Se houver ligação entre o escândalo da empresa paulista e a
Saae, investigada em Sorocaba, a corrupção pode ultrapassar R$ 2 bi.
Se as investigações apontarem novos fatos, o diretor
metropolitano Paulo Massato pode ser convidado novamente para depor. Para
verificar o real montante de desvios, a ABENDI e as empresas vencedoras de
licitações na área de vazamentos de água precisam ser investigadas de maneira
efetiva.
Fonte:
Diário
do Centro do Mundo.