Mesmo sob sol forte, a professora Noadias Novaes, de 38 anos, caminha ou pedala pelas estradas de chão da zona rural de Itapipoca para dar aulas a crianças e adolescentes com deficiência. De casa em casa, reúne os estudantes na calçada, no terreiro ou no alpendre, mantendo o distanciamento social, para desenvolver suas atividades pedagógicas. Desde o início da pandemia, tornou essa "educação delivery" parte de sua rotina. Lotada na rede municipal, a professora é responsável pela sala de recurso multifuncional da Escola de Ensino Básico Alonso Pinto de Castro, onde desenvolve o Atendimento Educacional Especializado (AEE). Lá, realizava atendimentos a dez estudantes no contraturno da educação regular.
“Não é um reforço. É um atendimento voltado a crianças com deficiência. Lá, trabalha a parte motora, cognitiva, desenvolvimento da fala com materiais adaptados, jogos. Cada um com atividades individuais, conforme eles gostam” diz a professora Noadia Novaes. Com a chegada do coronavírus, veio a dúvida: O que fazer para continuar seu trabalho? “Ninguém imaginava passar por isso. Quando houve o aviso de fechar a escola, já comecei a elaborar um projeto de como atender os alunos”, conta. Dos dez que atende, apenas três têm acesso à internet. “E os que não tem? Como fica? Os alunos precisam de uma continuidade. Se pararem podem regredir, esquecer”, justifica.
A professora decidiu visitar seus alunos em suas comunidades para manter o acompanhamento. Ainda em março de 2020, redigiu uma carta de apresentação explicando o que é o AEE com fotos de seus alunos, suas localidades, idade, entre outras informações para conseguir apoio e autorização da escola. Depois disso, conseguiu criar uma agenda semanal junto com os pais. Três dias por semana ministra as aulas. Outros dois, dedica a avaliação e planejamento. Outras crianças interessadas em estudar se juntaram aos alunos da professora.
“Lá
vem a tia”
Na primeira semana, se deparou com uma realidade difícil: as condições de famílias pobres vivendo na pandemia, sem acesso à educação remota e falta de alimentos. “Foi uma luta, porque é importante para mim e para eles. Uma terapia para mim e para eles”. Outro problema identificado é a ausência de aulas para crianças que não têm deficiência, mas estão longe da escola. “Às vezes é um irmão, um vizinho. Eles queriam participar, ficavam olhando”, lembra. A partir daí, Noadias “adotou” outros meninos e meninas interessados em estudar que se juntaram aos alunos da professora que, agora, atende 30 estudantes.
Em cada “ponto de ensino”, como batizou a casa dos seus alunos, dá aula com cerca de uma hora. Após finalizar, volta à estrada a pé ou, em algumas localidades mais distantes, de bicicleta. São cerca de meia hora a quarenta minutos de pedal. Quando de longe enxergam seu boné azul, as crianças correm para recepcioná-la. “Lá vem a tia”, sentenciam. Noadias ainda leva consigo milho de pipoca ou cuscuz para após as aulas oferecer um lanche, prontamente cozinhado pelas mães. “Faço questão. É uma festa”, define. A agricultora Ana Maria Ribeiro, mãe do pequeno Marlen, que mora na comunidade de Varjota, acredita que o apoio da professora tem sido fundamental. “Aqui ainda não tem internet. A pandemia está complicada em tudo. Na escola, tem aquela atenção dos professores de está perto, explicado. Agora, está muito difícil” afirma a agricultora Ana Maria Ribeiro.
Com
o apoio da educadora, Ana Maria enxerga uma mudança. “Se não fosse isso, estariam
parados, perdendo aula. Ela é muito dedicada. A gente nota, às vezes, o
cansaço, mas ela não desiste”, completa. Noadias enxerga que tem colhido bons
frutos, inclusive dos alunos que ela “adotou” durante esse trabalho. “Muitos
não tinham sequer a habilidade de segurar um lápis. Hoje, escrevem seu nome.
Estão na parte de soletrar. É um avanço grande. Estou muito feliz. Isso, sem
falar, a curiosidade de implantar uma rotina de estudos nas casas deles”,
orgulha-se.
A
luta pela própria educação
Nascida
em Fortaleza, Noadias mudou-se para Itapipoca para morar com seus pais aos sete
anos. Desde criança, também enfrentou desafios para conseguir terminar os
estudos. Na sua comunidade, só pôde cursar o Ensino Médio. Depois disso, passou
a se deslocar, diariamente, para a sede do município. Todos os dias, percorria
42 quilômetros em um caminhão pau-de-arara, oferecido pela Prefeitura para o
deslocamento dos estudantes. As aulas eram à noite. Por isso, de dia, ajudava a
família na lida com o campo.
Com
uma “vaquinha” patrocinada por suas tias, conseguiu ingressar no Ensino
Superior em um instituto privado. Foi assim que se formou em Pedagogia e,
depois, em Biologia. “Meus pais não tinham condições. Eu não tinha nem
perspectiva de fazer faculdade, porque não tinha condições. Mas o Senhor foi
bom”, agradece. Durante os dois cursos, foi aprovada em Química pela
Universidade Estadual do Ceará (UECE), onde concluiu sua terceira graduação.
Sua primeira experiência em sala de aula foi como professora temporária do
Estado, em 2005, no Ensino Médio. Depois, foi aprovada em um concurso para
Educação Infantil em Itapipoca. Logo, teve seus primeiros contatos com crianças
com deficiência e teve curiosidade de aprender o que é a educação especial.
Em
Fortaleza, procurou fazer um curso na área, que durou cinco anos. Nos primeiros
três, a Prefeitura deu apoio com o transporte, enquanto nos dois últimos as
viagens saíram do seu próprio bolso. “Aperfeiçoei em deficiência intelectual,
autismo, libras, braile”, exemplifica. Como professora efetiva, ingressou em
uma das vagas para a sala de recurso multifuncional que faz o atendimento
especializado. Desde 2016, tem contato direto com alunos com necessidades
especiais. Além do apoio no contraturno, ela dá dicas aos professores do ensino
regular em como melhorar o aprendizado das crianças e adolescentes que
acompanha.
Diário do Nordeste