A
garota de dez anos que passou por um aborto, nesse domingo, 16, em Recife,
Pernambuco, após ter sido estuprada quatro anos pelo tio,
só conseguiu interromper a gestação de 22 semanas com
autorização da justiça. Isso porque a Constituição Brasileira
qualifica a prática de abortamento como crime, mas assegura que
ela seja realizada em casos específicos de violência e de riscos à saúde da
gestante.
O
caso de violência sexual sofrido pela garota só foi descoberto quando
a vítima se queixou de dor abdominal e deu entrada
no Hospital Roberto Silvares, Espírito Santo, região onde reside com a
família. Após o exame para gravidez ter dado positivo, ela acabou
revelando aos médicos que sofria abusos sexuais e ameaças do tio, fazendo
com que o agressor fugisse.
O
consentimento judicial para o aborto foi dado por Antonio Moreira
Fernandes, juiz da Vara da Infância e da Juventude da cidade de São Mateus. O
magistrado analisou o caso da garota e determinou que a vítima
fosse submetida ao procedimento de melhor viabilidade e de forma
imediata, para que sua vida fosse preservada.
Ainda
que autorizado, médicos de uma unidade hospitalar do Espírito
Santo se recusaram a realizar o procedimento por alegarem que o feto já estava
com cincos meses. Dessa maneira, a vítima precisou ser
transferida em sigilo para Recife, onde foi acolhida pelo Centro Integrado de
Saúde Amaury de Medeiros (Cisam).
Amparada pela
constituição
A
decisão do magistrado teve como base o artigo 128 do Código Penal brasileiro,
que discrimina duas possibilidades em que o aborto pode ser autorizado, sendo
a primeira em caso da gravidez ser fruto de um estupro e a segunda se a
gestação colocar em risco a vida da gestante. Em 2012, o Supremo
Tribunal Federal (STF) ainda ampliou a decisão para que o
procedimento também possa ser realizado em caso da gestação ser de um bebê
anencéfalo (sem cérebro).
Nadja
Furtado, membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
da Ordem dos Advogados do Brasil Secção Ceará (OAB-CE), explicou que a
lei não determina um período especifico que a gestação precisa ter para ser
interrompida. Por tanto, para que o processo seja autorizado
basta que ele se enquadre dentro dos casos previstos na Constituição e que seja
da vontade da vítima ou de seu responsável.
Em
relação aos médicos que se recusaram a realizar o procedimento na garota, a
especialista explica que existe uma norma técnica do Ministério da
Saúde que dispõe que o sistema sanitário não pode se
sobrepor à legislação. Nesse caso, porém, os profissionais são
amparados por um código de ética que os permitem a não realizar procedimentos
que os deixem "desconfortáveis".
Adriano
Leitinho, defensor público titular da terceira vara da infância e
juventude da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), reforça ainda que -
mesmo amparados por esse código, pode ser que exista a possibilidade desses
profissionais responderem por crime de "desobediência".
Em
relação a decisão do magistrado, Adriano salientou que o legislador entendeu
como predominante a vida da garota, não do feto. "Obrigar essa criança,
que estava sendo vitima de estupro desde os seis anos de idade, a dar
seguimento a essa gestação seria um abuso”, considerou ainda.
Estatística
Apesar
de ter causado espanto e comoção pública, o caso de estrupo vivido pela garota
de 10 anos faz parte de um estatística cruel do Brasil. De acordo com dados
levantados pela BBC News do segundo Anuário Brasileiro de Segurança
Pública 2019, a cada hora, quatro meninas até 13 anos são
estupradas no País.
Quando
analisadas informações do Sistema Único de Saúde (SUS), a
reportagem ainda identificou que, entre as vítimas que engravidam, seis garotas
de 10 a 14 anos abortam por dia. Foram ao menos 642
internações desse tipo em 2020, fazendo com que o País passasse a
registrar uma média anual de 26 mil partos de mães com idades entre 10 a 14
anos.
A
grande maioria (66%) das internações correspondem a garotas pardas, sendo 28%
das vítimas de cor branca- dado que ainda pode revelar a realidade
socieconômica a qual vítimas estão inseridas. De acordo com
Adriano, todas essas crianças devem ser amparadas pela constituição não
apenas para realizarem o aborto, mas para que tenham acompanhamento médico após
o procedimento, como o apoio psicológico.
O
especialista ainda pontua que, em muitos desses casos, o aborto pode não
acontecer devido a decisão da vítima não ser levada em
consideração por ela ser de menor, o que define como erro.
"A autonomia da criança e do adolescente encontra muita resistência da
sociedade e do operador de direito. Não entendem que ela é uma pessoa como
qualquer outra, que tem direito a voz e que, por isso, deve ser escutada
quanto ao que decide", afirma.
O POVO