Em abril de 2003, a revista
Viagem e Turismo, da Editora Abril, publicou uma reportagem sobre um personagem
e um lugar que viraram quase sinônimos um do outro: Fernando Henrique Cardoso e
Paris.
O ex-presidente falou
sobre sua vida na capital francesa, inclusive dando detalhes do apartamento na
Avenue Foch, endereço dos ricos e de poderosos com Idi Amin Dada.
Nestes dias em que o
“triplex do Lula no Guarujá” e “o sítio do Lula em Atibaia” não saem do
noticiário, é cada vez mais curioso notar como nenhuma sobrancelha nunca se
levantou por causa do apê.
A repórter da VT
(onde eu trabalhava como redator chefe na época) contou como foi a aparição de
FHC para a reunião que rendeu a reportagem: “Ele chegou ao almoço num Mercedes,
com motorista, vindo da piscina perto de seu apartamento. Tomamos vinho, ele
comeu alcachofras de entrada, raia como prato principal e ovos nevados de
sobremesa. Nada de gravata, apenas uma camisa esporte sobre o casacão que tirou
ao entrar.”
Na matéria, ele diz o
texto que depois repetiria em ocasiões diversas: o imóvel era emprestado de sua
amiga Maria do Carmo Abreu Sodré, que o herdou do pai, Roberto de Abreu Sodré,
ex-governador de São Paulo.
Mas a história dá uma enrolada a partir daí.
Maria do Carmo era
casada com o empresário Jovelino Carvalho Mineiro Filho. Nos anos 70, Jovelino
fez mestrado na Sorbonne e conheceu Paulo Henrique Cardoso. “O conheci como
amigo do Paulo Henrique e nos tornamos grandes amigos”, disse ele sobre FHC.
“Ele assistiu umas
aulas minhas na década de 1970, creio”, contou o ex-presidente. “Ele funciona
basicamente como líder rural”. É uma definição, na melhor das hipóteses,
simplista.
Em 2000, Itamar Franco,
então governador de Minas Gerais, mencionou a associação de FHC com Jovelino na
fazenda Córrego da Ponte, em Buritis, na Istoé. “Essa fazenda tem algum
mistério”, disse Itamar. “Muito complicada essa transação imobiliária. Metade
pertence a um homem chamado Jovelino Mineiro e a outra metade pertence aos
filhos de Fernando Henrique.”
Jovelino foi acusado
de ser grileiro pelo MST no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, região
repleta de terras devolutas. Em 1995, a Camargo Corrêa construiu um aeródromo
particular em Buritis, concluído em menos de 3 meses.
Jovelino era pau pra
toda obra. Em 2002, ajudou Fernando Henrique, no final do segundo mandato, a
arrecadar fundos para seu instituto. A revista Época publicou um relato de como
foi o convescote em Brasília com a presença de executivos das maiores
empreiteiras:
“Foi uma noite de
gala. Na segunda-feira, o presidente Fernando Henrique Cardoso reuniu 12 dos
maiores empresários do país para um jantar no Palácio da Alvorada, regado a
vinho francês Château Pavie, de Saint Émilion (US$ 150 a garrafa, nos
restaurantes de Brasília). Durante as quase três horas em que saborearam o
cardápio preparado pela chef Roberta Sudbrack – ravióli de aspargos, seguido de
foie gras, perdiz acompanhada de penne e alcachofra e rabanada de frutas
vermelhas –, FHC aproveitou para passar o chapéu. Após uma rápida discussão
sobre valores, os 12 comensais do presidente se comprometeram a fazer uma
doação conjunta de R$ 7 milhões”.
Mais: ”O dinheiro
fará parte de um fundo que financiará palestras, cursos, viagens ao Exterior
(sic) do futuro ex-presidente e servirá também para trazer ao Brasil convidados
estrangeiros ilustres. Os empresários foram selecionados pelo velho e leal
amigo, Jovelino Mineiro, sócio dos filhos do presidente na fazenda de Buritis,
em Minas Gerais.”
Conflito de
interesses? Tráfico de influência? Alguma outra dessas acusações que estão
na moda?
Em depoimento a
Joaquim de Carvalho, no DCM, a jornalista Mirian Dutra afirmou que o
apartamento está no nome de Jovelino, mas o dono é seu ex-namorado. “Ele é um
operador dele”, diz Mirian.
Jovelino é um laranja
ou apenas um sujeito generoso e desapegado? Como anotaria o juiz Moro,
evidentemente se referindo a Lula, há aí um “possível envolvimento criminoso”.
Possível, que fique bem claro. Jamais saberemos.
Eis a Paris de Fernando Henrique Cardoso, o
homem cujo apartamento não pertence a dele.
Por oito anos, Fernando Henrique Cardoso
governou um país, morou num palácio e foi servido por dezenas de empregados.
Assim que tudo terminou, ele quis férias. E, com todos os recantos do mundo a
seu dispor, escolheu aquele em que é obrigado a arrumar a própria cama – “É
horrível”, admite –, a levar as camisas para a lavanderia, toma bronca quando
deixa a louça suja acumular e não é reconhecido nas ruas. O ex-presidente do
Brasil escolheu Paris.
(…)
A familiaridade com a França vem dos tempos de
aluno da Universidade de São Paulo, quando vários professores eram franceses;
foi aprofundada nos três períodos em que morou em Paris entre os anos 60 e 70;
e é atualizada pelos amigos. “Aqui não sou turista, não me sinto na obrigação
de conhecer nada. Por isso, agora que posso, sou um flâneur”, diz.
(…)
Basicamente, o que ele faz em Paris é, como
bom ex-professor de sociologia, ler e, como bom político, jantar e almoçar com
amigos e personalidades do mundo político. Mas, em seus passeios, também
descobre belíssimas atrações (como o Parc de La Villette, um dos preferidos de
seus netos). Pode-se dizer que poucos guias conhecem Paris tão bem quanto
Fernando Henrique Cardoso.
(…)
Para comprar livros ou checar as novidades,
ele prefere a livraria Fnac de Champs-Elysées. Não é a mais charmosa da cidade
e nem é histórica, mas é prática e bem fornida. Para comentar a guerra no
Iraque ou murmurar seus receios e esperanças com o governo Lula, sua carta de
opções é maior. Assumido pão-duro, Fernando Henrique freqüenta restaurantes
estrelados pelo honorável Guia Michelin, a convite, e bistrôs, quando paga. O
critério, conta, é o da boa comida.
(…)
Na sua lista de recomendáveis, entra o bistrô
do chef Michel Rostang, onde o almoço, com entrada, prato e café, custa 27
euros, mas não seu restaurante duas estrelas, que fica ao lado e onde se gastam
150 euros numa refeição. Fernando Henrique vai bastante também ao Giulio
Rebellato. Era uma maneira bem mais eficaz de escapar à pia da cozinha do que
argumentar com a mulher, Ruth, como fez em algumas ocasiões: “Eu fui presidente
do Brasil, morei num palácio. Você acha pouco eu aqui lavando copo?” A poucos
quarteirões de sua casa, o restaurante funcionou como o-italiano-ali-da-esquina
nessa temporada de inverno da família Cardoso no seizième arrondissement.
O seizième, bairro dos parisienses ricos, não foi uma escolha. O
apartamento de frente para a Foch, uma avenida de quatro pistas, ladeadas por
jardins, que liga o Arco do Triunfo ao Parque Bois de Boulogne, foi emprestado
por sua amiga Maria do Carmo Abreu Sodré, que o herdou do pai, Roberto de Abreu
Sodré. Acoplado a um estúdio, ele tem cerca de 100 metros quadrados e mantém a
decoração deixada pelo ex-governador paulista. Fernando Henrique esbarra nos
enfeites da casa e sente falta, no bairro, do burburinho dos cafés, brasseries
e livrarias do Quartier Latin, região em que morou por mais tempo.
Em compensação, o apartamento tem um conforto que o hóspede
valoriza: dois banheiros e um lavabo. Fernando Henrique morou pela primeira vez
em Paris em 1961, numa casa de estudantes na Cidade Universitária. A Paris
daquele tempo era escura, suja, com os prédios cobertos por uma fuligem negra.
O “brilhantismo” – definição dele – atual da cidade só começou a aparecer nos
anos 70. “Eu vi a eclosão do banho na França. As pessoas compravam chuveiros,
mas, sem ter onde instalar, os colocavam na cozinha”, conta. Às vezes, ainda no
corredor em direção a uma reunião de estudo, ele adivinhava quais eram os
colegas presentes pelo cheiro.
(…)
Carregado por Ruth, assistiu à peça A Tragédia de Hamlet, dirigida
pelo badalado Peter Brook. Gostou dela e do teatro, que não conhecia. O Théâtre
des Bouffes du Nord foi construído no século 19 para ser um teatro popular. Foi
ressuscitado em 1974 pela turma de Peter Brook, que manteve sua rusticidade e
as marcas do tempo. Outra novidade cultural que entusiasma Fernando Henrique é
o Parc de La Villette, com seus jardins e mil e uma atividades.
Fonte: Diário do Centro do Mundo.