Desde
o início do caso Cunha, uma coisa me intrigou particularmente: como ele, ferido
de morte por evidências acachapantes de corrupção, poderia ter o poder de decidir
sobre algo de tamanho impacto para o país como um processo de impeachment?
Somos uma sociedade tão vulnerável assim a achacadores como
Cunha? Não temos defesas, não temos freios que nos protejam em situações de
flagrante perigo?
Desde que os suíços mandaram ao Brasil as provas dos crimes de Cunha, os dias
foram passando, um a um, lentamente, sem que minha questão encontrasse
resposta.
A imagem que me ocorreu era esta: deixar um sujeito
desesperado e disposto a tudo na posse de uma metralhadora.
Bem, veio enfim o pedido de impeachment, com o tumulto que se
pode prever para os próximos meses.
Mas, ao mesmo tempo, apareceu a resposta à minha questão:
sim, o Brasil tem mecanismos de defesa.
O que choca é que eles tenham sido postos na mesa apenas
agora, quando Cunha já usou desvairadamente a sua metralhadora.
Juristas lembram o chamado “desvio de finalidade”, previsto
na lei. É quando alguém usa um cargo de caráter público para benefício privado.
O
jurista Joaquim Falcão, da FGV do Rio, colocou isso de maneira claríssima num artigo publicado hoje no site de assuntos
jurídicos Jota.
Falcão escreveu: “Não se trata mais de saber se tem conta na
Suíça ou não. Se se mentiu ou não aos colegas. Tudo fica pequeno quando a alma
é pequena. A eventual conduta ilegal de Eduardo Cunha agora é outra. É maior.
Fácil perceber.
As prerrogativas de decidir pauta, horário das sessões,
prioridades de votação, encaminhamento ou não dos pedidos de impeachment, por
exemplo, não são prerrogativas do “cidadão” Eduardo Cunha. Nem mesmo do
“deputado“ Eduardo Cunha. São prerrogativas públicas do cargo de “presidente da
Câmara”.
Como prerrogativas públicas, não podem ser apropriadas por
interesses privados. É como se um policial usasse a viatura pública, que tem
finalidade de garantir a segurança da coletividade, para ir à praia com a
família. Ou o delegado deixasse de registrar uma queixa porque é contra um
parente seu.
Em suma: o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, estaria
usando da prerrogativa pública para a proteção privada do cidadão Eduardo
Cunha. São papéis com direitos e deveres distintos. Não se confundem.
Não é por menos que vários juristas consideram, e já começam
a surgir, junto ao Supremo, tentativas de caracterizar esta ilegalidade.”
A ideia chave aí: Eduardo Cunha está usando da prerrogativa
pública para a proteção privada do cidadão Eduardo Cunha.
É o que claramente está ocorrendo.
Respondida
minha antiga questão – sim, há proteção contra atitudes como a de Cunha –
aparece imediatamente outra: por que este argumento definitivo demorou
uma eternidade para vir à tona?
Onde estava a defesa do governo, que não tratou de informar
no devido tempo a opinião pública sobre a natureza do procedimento de Eduardo
Cunha?
Onde
estava a mídia, com sua tonelada de irrelevâncias sobre o tema do impeachment,
e incapaz de jogar luz numa informação tão importante?
Disse aqui algumas vezes: a missão essencial da imprensa é
jogar luz onde haja escuridão, para que os cidadãos possam se informar
corretamente. Mas a mídia brasileira faz o oposto: onde há escuridão, ela atira
ainda mais sombras.
O fato é que desde o primeiro momento Eduardo Cunha usou a
presidência da Câmara como se fosse uma propriedade sua pessoal e
intransferível.
É mais um delito de Cunha. Talvez o maior deles.
Fonte: Diário do Centro do Mundo.













