Um
dia após o passaralho de dezenas (talvez centenas) de jornalistas na Redação do
Grupo Globo, o tema ainda reverbera forte nas redes sociais e entre
jornalistas. Repórter com larga experiência em vários jornais do
país, Marcelo Migliaccio faz uma análise dura, porém realista, do quanto a
perda do emprego provoca em significativa parcela do universo profissional que,
não raro, confunde o cargo, o posto alcançado, a ascensão profissional, com a
própria personalidade. O choque de realidade que espera alguns daqueles que
perderam seus empregos, e ingenuamente se deixaram confundir, pode parecer
duro, mas se transformará necessariamente em um grande aprendizado. Leia o
artigo.
Por
Marcelo Migliaccio
A demissão é um choque de
realidade. Você passa centenas, milhares de manhãs, tardes, noites e até
madrugadas enfurnado numa redação tensa e claustrofóbica. Perde os melhores momentos da infância de seus filhos
equilibrando-se sobre um tapete que seus amigos virtuais puxam
dissimuladamente, dando-lhe tapinhas nas costas toda segunda-feira e
perguntando como foi o fim de semana.
Não importava pra você se o jornal em que você trabalhava apoiou dois
golpes de estado e só desistiu na última hora de liderar o terceiro porque ia
pegar muito mal. Sentindo-se parte daquela família, você relativizava toda a
sacanagem. O que queria mesmo era poder entrar num shopping sábado à tarde e
posar de classe dominante. Sim, você era o rei do supermercado, carteira cheia,
empáfia, carrinho abarrotado. Venci, você pensava, com cuidado para o seu
orgulho besta não dar na vista.
Parecia até que era dono de
alguma coisa além da sua força de trabalho. Sim, você confundiu tudo: uma coisa
é o patrão, o dono da parada, a outra é você, o empregado, peça descartável
como aquele faxineiro que coloca papel higiênico nos banheiros da redação. A
culpa não é sua, qualquer um ficaria inebriado. Sei, seus textos são ótimos,
nesses anos você fez isso e aquilo, entrevistou grandes astros, ministros, até
presidentes. Mas isso tudo e nada para o manda-chuva é a mesma coisa. Seu belo
currículo não resistiu à tesoura de um tecnocrata e Prêmio Esso não tem valor
em nenhuma padaria da cidade.
Você ontem caiu das nuvens
(bem, é melhor do que cair do segundo andar). Pelos seus anos de dedicação e
suor, recebeu um rotundo pontapé no traseiro. Agora, ninguém vai mais convidar
o "Fulano do Jornal Tal" para um almoço grátis. Porque o convidado na
verdade era o Jornal Tal e não o Fulano. Entradas para teatro e cinema? Esqueça.
Daqui em diante, ou você paga o ingresso ou fica na calçada da infâmia.
Não, amigo, você não é
classe dominante, mesmo que tenha defendido os ideais dos seus patrões com
unhas e dentes e a maior convicção do mundo. Suas ideias neoliberais talvez não
façam mais sentido a partir de hoje. Será preciso encarar os vizinhos sem
aquele poderoso crachá no peito. É hora de engolir o orgulho. Tem um gosto meio
amargo, mas você consegue.
Fonte: Conexão Jornalismo.