O texto abaixo foi publicado no ggn. O autor, Luiz Moreira, doutor em
Direito, é professor de Direito Constitucional.
Na
última semana, em depoimento à CPI da Petrobras, um agente e um delegado da
Polícia Federal revelaram a existência de escutas ambientais ilegais,
utilizadas para monitorar presos da operação Lava Jato, na sede da Polícia
Federal em Curitiba.
Neste domingo, em entrevista a Eliane Cantanhêde e a Andreza Matais, o diretor
geral da Polícia Federal relativiza esses depoimentos, assevera que condutas
duvidosas de policiais são apuradas pela corregedoria da PF e que “os
equipamentos podem ser auditados para saber quem usou, quando usou, no que
usou”, atribuindo aos grampos ilegais expressão que diminui sua importância ao
tratá-los como “suposto fato”.
Antes de discutirmos as implicações das afirmações dos
policiais federais, convém esclarecer uma questão que perpassa a entrevista de
Leandro Daiello, diretor geral da PF, presente em pelo menos três momentos: (1)
“Nós cumprimos a lei e ninguém vai aceitar ingerência política aqui”; que (2) o
ministro da Justiça chefia a PF apenas na seara administrativa; e (3) ao
comentar declarações da Presidente da República.
Ao contrário do que afirma Leandro Daiello, a Polícia Federal
é uma instituição subordinada à Presidência da República, detendo apenas
autonomia operacional, o que não se confunde com autonomia política.
No organograma do Estado brasileiro, a chefia da Polícia
Federal é confiada ao Poder Executivo para que se evidencie que a pauta de sua
atuação é externa, marcada por uma verticalização que a submete ao controle
social. Portanto, a sociedade civil confia ao Presidente eleito a direção política
da Polícia Federal, a fim de demonstrar sua subordinação à política vitoriosa
nas eleições.
No entanto, a utilização da expressão “ingerência política”
pode suscitar mal entendidos, que devem ser esclarecidos.
Ao empregar tal expressão o diretor geral da Polícia Federal
certamente quis dizer que não serão aceitas investigações direcionadas, em que
provas são forjadas e que “alvos” são escolhidos.
Desse modo, ingerência política significa o aparelhamento da
polícia para a criminalização dos adversários do Governo ou da própria Polícia
Federal ou ainda a eliminação de provas contra seus aliados ou sua proteção,
impedindo que sejam responsabilizados por suas condutas contrárias à lei. Não
custa lembrar que essas condutas são tipificadas como crimes.
Bem, é justamente para se evitar que a Polícia Federal se
transforme em uma “polícia política” que foram desenhados dois tipos de
controle à sua atuação. O primeiro é político; o segundo, operacional.
O controle político é exercido pela Presidência da República,
mediante atuação de seu Ministro da Justiça. Assim, há uma subordinação
hierárquica da Polícia Federal ao Poder Executivo. E o que significa essa
subordinação hierárquica? Significa que a Policia Federal não comanda a si
mesma; que suas diretrizes orçamentárias e que a organização de seus serviços
subordinam-se ao governante eleito.
E o que isso quer dizer? Simplesmente que a Polícia Federal é
um serviço e que sua atuação é controlada pela sociedade civil, mediante seu
representante na Presidência da República. Então, a Polícia Federal é uma
instituição que não produz sua legitimidade e que, por isso, se subordina a um
Poder do qual obtém a justificação para sua atuação.
Nesse sentido, uma instituição a qual se confia o poder de
investigar cidadãos, de portar armas de alto poder de destruição e de manipular
dados e informações de pessoas precisa se submeter ao poder político. Mais:
precisa ter claro que suas atribuições não são um fim em si mesmo e que, por
esse motivo, submetem-se ao poder conferido pelos cidadãos à Presidência da
República.
Assim, nas democracias constitucionais a chefia das policias
é exercida pela sociedade civil, por intermédio dos Governantes eleitos, para
garantir que não produzirão sua própria agenda nem que gozarão de autonomia ante
o regime democrático.
Em democracias recentes, como a brasileira, nunca é demais
rememorar que todas as ditaduras modernas obtiveram forma jurídica e foram
mantidas pelo uso indiscriminado da força e por sistemas de investigação que
criminalizaram a sociedade civil, tratando os adversários do regime de exceção
como alvos, submetendo-os à tortura e à morte.
Já sua autonomia operacional se limita, como polícia
judiciária, à instrução processual e ao controle de outra instituição, o
Ministério Público Federal, não sendo, portanto, imune a controles.
Como polícia técnica ou polícia científica, sua tarefa é a
explicitação de provas, que se realiza mediante descrição da existência de
fatos criminosos e sua elucidação. Esses fatos instruem o processo, em fase que
se chama inquérito, submetendo-se à fiscalização externa do Ministério Público
Federal e sua convalidação pelo Poder Judiciário.
Quanto à relação do Ministro da Justiça com a Polícia
Federal. Trata-se de relação verticalizada, entre chefe e chefiado, em que o
Ministro da Justiça comanda a Polícia Federal e ao qual seu diretor geral deve
obediência, podendo, por livre conveniência do Ministro da Justiça, exonerá-lo
dessa função.
No que diz respeito ao diretor da Polícia Federal comentar
declarações da Presidente da República. Trata-se de clara quebra de hierarquia
que deveria ter como conseqüência sua imediata exoneração da função de diretor
geral. Explico:
Em democracias constitucionais é inadmissível que
instituições que manejam armas e informações se movimentem para além de suas
competências. Como Chefe de Estado e de Governo, a Presidente Dilma encarna a
República brasileira e seus comentários e opiniões não se submetem à crítica
pública de subordinados armados.
Nesse sentido, seria inimaginável, por exemplo, que o
Presidente Obama fosse censurado pelo diretor do FBI.
No que diz respeito ao depoimento dos policias federais à CPI
e às declarações de seu diretor geral é preciso pautar a discussão pelo que
estabelece a Constituição da República.
Não há nada de normal nem de razoável em um procedimento de
instalação de escutas ambientais, muito menos que essa ilegalidade ocorra
dentro da sede da Polícia Federal, a partir de determinação, de seu
superintendente em Curitiba, a um agente para que instale aparelhos de
monitoração ambiental, sem autorização judicial.
Ao contrário das manifestações contrárias, escutas ambientais
ilegais, ou seja, introduzidas sem autorização judicial, constituem clara
violação ao sistema processual brasileiro.
Em sua entrevista, Leandro Daiello afirma que a “PF não é uma
grampolândia”. Não se trata de desqualificar uma instituição republicana.
Trata-se de verificar se fatos ilegais foram cometidos por agentes do Estado,
no caso, Policiais Federais.
Daiello tem razão quando, na entrevista, explica que cabe à
PF investigar fatos. Ocorre que se esses fatos são praticados por Policiais
Federais, eles devem receber o mesmo tratamento deferido aos cidadãos comuns,
ou seja, como ele mesmo diz “aonde os fatos vão chegar é consequência da
investigação, doa a quem doer”.
Esse episódio segue envolvo em muitas obscuridades. Listemos
algumas:
(I) Os equipamentos de escuta ambiental constam do
almoxarifado da Polícia Federal? Logo, sua retirada por policial e sua
instalação são registradas em algum documento interno? Se a resposta for
afirmativa, facilmente seria constatável se algum aparelho da instituição foi
utilizado para realizar a tal escuta ambiental.
(II) Por que a demora na investigação do caso pela
Corregedoria? O fato é certo (a instalação dos equipamentos de escuta) e os
autores são conhecidos (agentes e delegados federais). Assim, qual a
dificuldade enfrentada para concluir essa investigação?
(III) A Polícia Federal tem algum procedimento para
realização de escutas ambientais? Há um protocolo a seguir? Existem meios para
diferenciar os aparelhos utilizados pela instituição dos que não pertencem a
ela?
(IV) Foram criados mecanismos que impossibilitem a utilização
ilegal dos equipamentos de escuta ambiental por seus policiais? Cidadãos
brasileiros podem ser monitorados ilegalmente pela PF?
Provas obtidas de forma ilegal tornam nulos depoimentos e
eventuais acordos de delação delas decorrentes. Essa, aliás, é uma regra por
todos conhecida e diversas vezes reiterada pelo Supremo Tribunal Federal.
Se, como sugere o depoimento dos policiais federais, essa
ilegalidade foi cometida, a Operação Lava Jato terá um fim lamentável. É isso
que cabe ao diretor geral da Polícia Federal esclarecer, “doa a quem doer”.
Fonte:
Diário
do Centro do Mundo.