Prestes
a completar 80 anos, o ex-presidente uruguaio José Mujica diz que a corrupção
afeta “a todos” na América Latina, mas que “quem gosta muito de dinheiro
deveria ser afastado da política”.
Em entrevista exclusiva à BBC Mundo, Mujica comentou a
corrupção em países como México e Brasil, e afirmou que a “vontade de ter bens
materiais” não se relaciona bem com o serviço público.
“Sempre disse aos empresários: se eu
souber que pediram alguma propina a vocês e vocês não me avisaram, teremos uma
relação péssima. Com essa declaração, não havia abertura para que me
oferecessem nada.”
“Se misturamos a vontade de ter dinheiro com a política
estamos fritos. Quem gosta muito de dinheiro tem que ser tirado da política. É
preciso castigar essa pessoa porque ela gosta de dinheiro? Não. Ela tem que ir
para o comércio, para a indústria, para onde se multiplica a riqueza”,
declarou.
Agora senador, Mujica diz que não descartaria voltar à
Presidência, caso sua saúde permitisse. Dá a impressão, no entanto, de que não
acredita na possibilidade.
“Se eu tivesse o grau de saúde que tenho hoje, não teria
nenhum problema. Mas estou quase com 80 anos, não acho que tenho idade adequada
de resistir ao vaivém de uma Presidência.”
O ex-presidente falou à BBC sentado sob uma árvore diante de
sua casa nos arredores de Montevidéu. O ambiente tranquilo e silencioso, que
sempre disse valorizar, agora é interrompido ocasionalmente pela chegada de
crianças e adolescentes à escola rural que ele inaugurou recentemente do outro
lado da rua.
Ele falou sobre narcotráfico e opinou sobre governos de
outros países latino-americanos. Entre elogios a sua cadela Manuela (“o
integrante mais fiel do meu governo”) e comparações entre o mate argentino e o
uruguaio, Mujica disse ainda que não considera ocupar um cargo internacional.
“Acredite,
para mim seria uma tortura. Não sou afeito ao protocolo, não sou a pessoa mais
indicada. Acho que as causas políticas têm muito fôlego e que é preciso
incorporar gente mais jovem que nós, que nos supere.”
“Algo doentio acontece na política
brasileira”, disse o ex-líder uruguaio sobre a cisão entre o governo de Dilma
Rousseff, em seu segundo mandato, e o Congresso eleito em 2014. “O Brasil é um
país gigantesco e cada Estado tem sua realidade, com partidos locais fortes.
Conseguir a maioria parlamentar no Brasil é um macramé (técnica de tecelagem
manual) onde pedem uma coisa aqui, outra ali.”
Para Mujica, o tráfico de influência
é “uma tradição” no país, já que os governos “têm que fazer o impossível para
conseguir a maioria parlamentar de alguma maneira”.
“Não digo que os fins justificam os
meios, quem diz é Maquiavel. O que digo é que isso é uma doença que existe há
muito tempo na política brasileira.”
Ao mesmo tempo, ele afirma que o
poder dos presidentes na democracia representativa é relativo e, por isso,
demora para que uma vontade do poder Executivo torne-se realidade. “Não se deve
confundir governar com mandar. Existe o papel da persuasão e do convencimento.
Um presidente deve se cercar de gente útil e de gente boa.”
Mujica diz ainda que é preciso
considerar o papel dos agentes externos ao governo na corrupção. “Para que haja
corruptos, também deve haver um agente corruptor. Não nos esqueçamos disso.”
Durante a entrevista, Mujica evitou fazer críticas frontais
aos governos latino-americanos. Questionado sobre seu apoio à administração de
Nicolás Maduro, na Venezuela, ele afirmou que “não gosta da existência de
presos políticos” no país, mas se posicionou contra possíveis intervenções em
meio à crise.
“A Venezuela tem problemas, sim. Mas não vai sair deles a
pauladas. Não é apoio, são as evidências. Porque não se ganham 14 eleições
sucessivas só usando a força.”
Mujica chegou a chamar a presidente argentina Cristina
Kirchner de “velha”, mas, desta vez, também dedicou-lhe palavras mais suaves.
“Não acho que seja uma presidenta maravilhosa, nem acho que seja uma bruxa. É
uma mulher que teve de enfrentar todo o machismo arraigado em uma sociedade.
Como muitos quiseram passar por cima dela, ela às vezes passa dos limites do
outro lado.”
Sobre o México, o ex-presidente voltou a afirmar que o
tráfico de drogas é um problema maior no país por causa de sua proximidade com
os Estados Unidos.
“Os Estados Unidos são o grande mercado consumidor das drogas
e os que têm infinito poder aquisitivo e o México é o lugar de trânsito. Isso
vem condicionando a vida deles e o México não teve a capacidade de resolver o
problema da influência crescente do narcotráfico, não foi só esse governo.”
“A combinação da ameaça e do dinheiro destroçou os poderes
públicos, que não conseguiram enfrentar isso. Mas eu não estou criticando o
México, acho que todos estamos expostos a isso hoje”, afirmou, defendendo
novamente a lei aprovada em seu governo, que tornou o Uruguai o primeiro país
do mundo a regularizar a produção, a venda e o consumo de maconha.
“Curiosamente, eu que não sou neoliberal acho que a melhor
fundamentação (para a lei) que encontrei é a de (Milton) Friedman (economista
americano). Digo isso raramente, mas não tenho preconceito. Acho que é preciso
roubar o mercado deles (dos narcotraficantes).”
Mujica diz que sua cadela de estimação, Manuela, foi
“integrante mais fiel” do governo
Centenas de perguntas foram enviadas para a entrevista com José Mujica, que foi
transmitida ao vivo pela internet e acompanhada em seis idiomas pela BBC nas
redes sociais. O ex-presidente teve que responder, por exemplo, sobre se já o
convidaram a fumar maconha desde a descriminalização do consumo.
“Apareceu aqui um rapaz, não sei de que país, com um baseado,
e me convidou para fumar. Eu não quis, mas eu também tenho meus vícios. De vez
em quando fumo um cigarro comum. E quem vai dizer que o tabaco é saudável? O
único vício bom é o amor, o resto são pragas. O problema está em quanto se
consome e isso é um problema mental.”
Algumas das perguntas mais frequentes eram sobre seu estilo
de vida, ao que respondeu que “a humildade é uma filosofia que não pretende
impor a ninguém”.
“Não posso mudar a cultura do mundo em que vivemos, mas posso
viver minha vida e dar minha opinião.”
O ex-presidente também não se esquivou de questões mais
difíceis – mesmo que fora do âmbito político – como a enviada por um
participante argentino: Beatles, Pink Floyd ou Rolling Stones?
“Diga a ele que sou um analfabeto no tema, porque sou
‘tangueiro’ de alma. Mas feita essa ressalva, prefiro os Rolling Stones.”
Fonte: Diário do Centro do
Mundo.