Há exatamente um ano o ministro
Gilmar Mendes paralisou a votação no Superior Tribunal Federal (STF) de uma
ação que pode proibir doações de empresas para candidatos e partidos políticos.
Em 2 de abril de 2014, Mendes
pediu vista da ação, procedimento que serve para o juiz analisar melhor a
questão em debate antes de proferir seu voto.
Essa demora não é algo fora do
comum. Embora o regimento do STF dê um prazo de até 30 dias para que um
ministro conclua o pedido de vista, não há sanções para o desrespeito da norma
– que acaba sendo descumprida rotineiramente.
Um estudo da FGV apontou,
inclusive, que o tempo médio que os ministros do Supremo levam para concluir
análises do tipo é de quase um ano.
A demora
de Mendes, porém, vem sendo alvo de duras críticas e levou até a criação de um
movimento na internet, o #DevolveGilmar. Uma petição online cobrando que o ministro
profira seu voto tinha 91 mil assinaturas até a tarde de quarta-feira.
Dois fatores alimentam a revolta:
·
Outros
sete ministros já votaram, e seis deles se manifestaram contra a doação de
empresas, o que significa que a maioria do Supremo (formado por onze ministros)
já decidiu a favor da ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
·
Mendes já
deu declarações públicas contra a ação da OAB, o que, segundo seus críticos,
indica que o ministro não está “segurando” o caso por necessidade de analisar
melhor o assunto.
A ação em questão é uma ADIn
(Ação Direta de Inconstitucionalidade) que pede que o STF responda: doações de
empresas a candidatos ferem à Constituição Federal?
A OAB sustenta que sim porque, na
opinião da entidade, o financiamento de candidatos e partidos políticos por
empresas desequilibra a disputa eleitoral, dando poder desproporcional ao
capital privado de influência sobre os rumos do país. Esse tipo de doação
“torna a política completamente dependente do poder econômico, o que se afigura
nefasto para o funcionamento da democracia”, afirma a Ordem.
Já votaram a favor do entendimento
da OAB os ministros Luiz Fux (relator do caso), Luís Roberto Barroso, Dias
Toffoli e Joaquim Barbosa (então presidente da corte, antes de se aposentar).
Após Mendes pedir vista, antes do encerramento da sessão, Marco Aurélio e
Ricardo Lewandowski anteciparam seus votos, posicionando-se também pela
proibição de doações de empresas. O ministro Teori Zavascki é até o momento o
único que se manifestou contra a ADIn.
“Decidi antecipar meu voto porque
era presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) na época e considerei
importante concluir imediatamente o julgamento (a tempo das eleições). É o que
eu digo sempre: no colegiado, vence a maioria, né? Não podemos tomar uma
matéria como uma questão pessoal. Ali deve vingar a impessoalidade”, disse
Marco Aurélio em entrevista à BBC Brasil.
“Há um prazo (para concluir o
pedido de vista). Mas prazo sem sanção, não é prazo, né? Acaba que fica na
concepção de cada qual”, acrescentou.
‘Processos que se perdem de vista’
Desde 2004, o regimento do STF
define que, após o processo ser remetido ao gabinete do ministro que pediu
vista, ele terá dez dias, renováveis automaticamente por mais dez, para
concluir sua análise. Caso não o faça, teria que apresentar uma justificativa
para requerer mais dez dias.
Quando criada, a norma foi
jocosamente descrita como “iniciativa para impedir que os processos se percam
de vista”, mas a regra acabou não “pegando”.
Um estudo da Escola de Direito da
FGV do Rio analisou a atuação dos ministros de 1988 até 2013 e concluiu que,
entre os pedidos de vista devolvidos até aquele ano, o tempo médio que os
ministros levaram para retornar o processo com seu voto foi de 346 dias.
Um dos professores responsáveis
pelo estudo “Supremo em Números”, Ivar Hartmann, diz que na prática cada
ministro tem um poder de veto.
“Qualquer ministro que não queira
que o caso seja julgado pede vista e, pelo tempo que ele quiser, suspende esse
processo. Isso tem um impacto: se um ministro não gosta da posição de outro,
pode pedir vista e esperar o outro se aposentar”, explica.
“Se o entendimento dele é contra
a ADIn, por exemplo, ele não precisa angariar votos, tentar convencer os
outros, basta que ele segure o processo por vários anos e, quando isso voltar à
pauta, não haja mais condições de o caso ser julgado”, nota ainda.
Durante o período pesquisado pela
FGV, 2.987 pedidos de vista foram feitos, dos quais 124 nunca haviam sido
devolvidos. Entre os casos mais longos sem desfecho está a ADIn movida pelo PT
em 1996 contra dispositivos da lei 9.295/96, que regulava o setor de
telecomunicações após sua privatização no governo FHC.
Marco Aurélio foi o primeiro a
pedir vista em março de 1997, seguido do ministro Maurício Correa em abril do
mesmo ano. Em junho de 1998 foi a vez de Nelson Jobim, que já se aposentou.
Hoje não há mais condições dessa
ação ser julgada, nota Hartmann, porque todo o setor de telecomunicações já se
desenvolveu sobre essa estrutura legal.
“Gilmar está jogando o jogo
segundo as regras que os próprios ministros criaram, na minha opinião, de
maneira ilegal. O que lamentável é que essas regras foram estabelecidas
informalmente, não é o que está no regimento do STF”, crítica Hartmann.
O professor da FGV diz que,
embora seja comum os juízes justificarem a demora afirmando que há uma carga
alta de trabalho (muitos processos para julgar), o levantamento não confirmou
esse tese.
Falta de controle e transparência
Para o presidente da Associação
Juízes para a Democracia (AJD), André Augusto Bezerra, casos como esse de
Gilmar Mendes decorrem da “falta de transparência do Judiciário em geral e do
Supremo em particular”.
Ele nota que o problema acaba
sendo mais grave no STF porque lá os ministros não estão sujeitos ao mesmo
controle dos juízes de primeira instância, contra os quais podem ser feitas
queixas nas corregedorias de Justiça e no CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
“Em tese, o ministro pode sofrer
um impeachment, mas isso é muito mais complicado”, afirma.
Como medida para evitar esse
problema, Bezerra defende que os ministros sejam obrigados a justificar
detalhadamente o motivo da demora.
“Num Estado de Direito, toda
pessoa que trabalha para o Estado tem que justificar seus atos, principalmente
aqueles que tem um poder grande de decisão”, argumenta.
A indignação gerada pelo
escândalo da Petrobras, de onde recursos teriam sido desviados para financiar
partidos por meio de empreiteiras, dá ainda mais urgência à questão, avalia o
juiz.
“Um caso como esse – a sociedade
assiste a denúncias de corrupção, referentes a campanha, que envolve diversos
partidos – no mínimo há uma obrigação moral do ministro em apreciar a causa com
mais urgência”, cobra.
Por que Mendes não vota?
Declarações do próprio ministro
indicam que ele já tem um voto formado e que o motivo da demora é deixar que o
próprio Congresso decida sobre o assunto.
“Isso é matéria do Congresso por
excelência. Alguém já imaginou o Supremo definindo qual vai ser o sistema
eleitoral? Se vai ser um sistema misto (de eleição dos deputados), se vai ser
um sistema majoritário? A partir daí é que se define como é que vai ser o
financiamento. Até porque isso é complexíssimo. Esses dias, o Renan (Calheiros,
presidente do Senado) disse que nas eleições municipais chega a ter 500 mil
candidatos no Brasil. Como você distribui o dinheiro?”, afirmou Gilmar Mendes
no mês passado.
Atualmente, há uma Comissão
Especial na Câmara de Deputados que analisa uma proposta de reforma política.
Alguns partidos, liderados pelo PT, querem a proibição das doações de empresas,
enquanto outros defendem que essa forma de financiamento seja mantida, com
algumas restrições. O PMDB, que atualmente presidente o Senado e a Câmara,
propõe, por exemplo, que cada empresa só possa doar para um partido – hoje elas
podem fazer repasses para todos ao mesmo tempo, se quiserem.
“Como o financiamento de campanha
será um dos objetos da reforma política no Congresso, é possível que ele esteja
segurando para que não haja uma interferência do Poder Judiciário sobre o Poder
Legislativo”, afirma o jurista Ives Gandra, ressaltando que não chegou a
conversar com Mendes sobre isso.
Para Gandra, o ministro não está
fazendo nada de errado. O jurista considera que os prazos previstos no
regimento do STF são apenas uma indicação, não uma obrigação. “O Código de
Processo Civil prevê que o juiz tem dez dias para decidir após a última
audiência, e nenhum juiz decide em dez dias”, observou.
Especialista em contas
eleitorais, o ex-presidente da Transparência Brasil Claudio Abramo também
entende que é o Congresso que deve decidir sobre o assunto e considera
“totalmente descabida” a ação movida pela OAB.
“Se o STF vai lá e diz que é inconstitucional,
no dia seguinte o Congresso vai incluir na Constituição (por meio de uma PEC)
dizendo que pode sim (haver doação de empresa)”, afirmou.
Ele vê, porém, uma consequência
positiva da iniciativa da OAB: se Mendes devolver a ação e ela for encerrada,
ao menos o Congresso terá que agir e considerar mudanças no atual sistema. A
expectativa de Abramo é que – pressionado – o Congresso aprove o financiamento
de campanha por empresa, mas restrita a valores baixos. Esse limite, na sua
opinião, reduziria o poder das empresas sobre os políticos.
“Um dos benefícios dessa ação
totalmente descabida é que vai forçar o Congresso a ter uma posição a respeito.
E pelo que eu vi, essa ideia de limitar (as doações), é algo que está sendo
discutido”, afirmou.
A BBC Brasil procurou Mendes para
comentar o assunto por meio de sua assessoria há duas semana, mas não obteve
retorno.
Fonte: Diário do Centro do Mundo.