Ao
ver o objeto com um longo e intimidador cano apontado para si, Adi Hudea, uma
criança de apenas 4 anos, ergueu as mãos em sinal de rendição, pensando
tratar-se de uma arma. Era apenas uma câmera.
O Campo da Oliveira é um acampamento no norte da Síria, onde
a guerra civil já matou mais de 200 mil pessoas desde 2011, incluindo o pai da
menina Adi Hudea.
O ano era 2012 e o fotojornalista turco Osman Sagirli estava
no assentamento para refugiados na Síria mas a foto foi postada recentemente no
twitter de Nadia Abu Shaban, também fotojornalista, baseada na faixa de Gaza. A
imagem viralizou, foi vista por mais de 1,8 milhão de pessoas.
Era ‘apenas’ uma câmera?
Não raro, crianças reagem com desconfiança, medo ou fuga ao
perceberem uma objetiva apontada. Também os índios não gostam de ser
fotografados, acreditam que suas almas fiquem presas ali (como também pensavam
acerca de espelhos). Em ambos os casos, evidência de pureza e ingenuidade.
Infelizmente, a pequena Adi não mais é ingênua. Conhece o medo, a morte, o
terror. Desconhece a câmera mas sabe o que um estranho pode fazer.
Questão de muitos debates, o fotojornalismo (e
fotojornalistas, claro) orgulha-se de ser o responsável por expor ao resto do
mundo as chagas e injustiças de determinado lugar, grupo, ou época. Sua nobre
função é a de incomodar, ‘fazer com que o café da manhã seja mal digerido’ como
afirmou a personagem de Juliette Binoche, uma fotógrafa de guerra no excelente
filme Mil Vezes Boa Noite. Em inesquecível sequência, a filha da personagem
principal pergunta porque ela havia decidido fotografar guerras. “Raiva”,
respondeu a mãe fotógrafa.
Nos anos 90 uma foto causou muita discussão a respeito do papel
do fotojornalista. A imagem de um abutre aguardando a morte de uma esquálida
criança no Sudão concedeu o prêmio Pullitzer de melhor fotografia para
fotógrafo sul-africano Kevin Carter.
Impactante, a foto rendeu louros e também muitas críticas.
Milhares de pessoas acusavam de ser o fotógrafo o verdadeiro abutre e que ele
deveria ter socorrido a criança. Kevin Carter esclareceu que depois do
registro, espantou o abutre e continuou com seu trabalho. Mas o julgamento foi
pesado demais para Carter. O fotógrafo suicidou-se poucos meses depois.
Câmeras e armas não têm o recurso do olhar oblíquo. São
diretas, intrometidas e necessitam boa mira. Ambas disparam e assustam. Seres
em condições de extrema degradação, humilhados e famintos, não têm obrigação de
compreender a (boa) intenção daquele intruso. Muitos rechaçam a aproximação e
reagem com violência até. O pequeno Adi demonstrou mais pragmatismo do que
medo. O que se pode esperar dele quando adulto? Quando o mundo em que vive é de
uma crueldade e insensibilidade à toda prova, podemos divagar se preferirá
munir-se de uma câmera ou um fuzil, caso chegue à idade adulta.
Em meio a tormenta que essas imagens provocam, o
fotojornalismo precisa se esquivar das acusações de colaborar com o efeito
‘zoológico’, de aguçar a curiosidade mórbida sem motivar uma ação positiva. É
um equívoco. O propósito é inicialmente de reflexão, mas nada impede que
observadores, leitores e afins se mobilizem e tenham uma atitude propositiva.
Que pensem nessas imagens antes de destilarem seu ódio xenófobo ou ao comprar
um produto sabidamente fabricado por escravos contemporâneos. Adi Hudea gerou
muita comoção e compaixão à distância, inspirou até poemas, mas quem irá
tirá-lo de lá? Não, isso não é obrigação do fotojornalista. O trabalho dele já
foi feito. Cada um no seu quadrado.