Road
Town, a capital das Ilhas Virgens Britânicas, é como uma pequena cidade do
litoral brasileiro. Só que muito mais rica, e com morros cobertos de vegetação
verde escura, e não casas amontoadas, como costuma ocorrer em muitas cidades do
litoral brasileiro.
Ao contrário, as casas no alto dos morros em Road Town são
grandes, distantes umas das outras, e com mais de um carro na garagem. Eu notei
outra diferença logo depois que atravessei o portão da imigração, no pequeno
porto da cidade, e caminhei pela rua principal.
Muitos prédios têm placas de bancos, empresas de seguro e
outras de suporte e intermediação de negócios, como Scotiabank, National Bank
of The Virgin Islands, First Caribbean Internacional Bank e Sotheby’s.
A presença dessas empresas mundialmente famosas é a face
visível de uma economia baseada na manutenção de empresas que existem apenas no
papel, como é o caso da Empire Investment Goup Ltd., a companhia que os donos
da Rede Globo abriram ali em 1999, com o objetivo exclusivo, segundo a Receita Federal,
de sonegar o imposto devido pela aquisição dos direitos de transmissão da Copa
do Mundo de 2002.
No caso da Globo, a placa que reluz é a Ernst & Young,
que, depois de criar e administrar a empresa de papel da Globo, vendeu sua
carteira para a Tricor e passou a se dedicar a serviços contábeis. Os clientes
são os mesmos: empresas de papel.
Offshore é o nome que se dá a essas empresas. O significado
literal é “afastado da costa”, um trocadilho sobre a natureza dessas sociedades
empresariais, que ficam longe de suas matrizes, e um termo usado na indústria
petrolífera – offshore é como são chamadas as operações de extração de petróleo
longe da costa.
A indústria do petróleo foi a primeira a usar pequenos países
estrangeiros para contornar obrigações legais. Há mais de 50 anos, gigantes do
setor abriram empresas de transportes em países como o Panamá.
Vendiam o petróleo a preço baixo para essas companhias (que
eram deles mesmos), que o revendiam a preço elevado, mas em país de tributação
favorecida. Além disso, caso houvesse acidente, o prejuízo seria menor, já que
as empresas de transporte não tinham patrimônio para ser usado em caso de
indenização.
O negócio deu tão certo que logo mafiosos, traficantes de
drogas e de armas, corruptos e sonegadores começaram a fazer o mesmo,
aproveitando que, nestes países, a propriedade real da empresa é mantida em
sigilo.
Bancos grandes, como o Chase Manhattan, abriram filiais
nestas localidades, incentivados pelas autoridades monetárias de seus países,
interessadas em manter sob sua jurisdição os dólares obtidos de negócios
ilícitos. Logo, o país de refúgio passou a ser chamado “paraíso fiscal”.
Em 1986, as Ilhas Virgens Britânicas, até então apenas um
local de intenso turismo e endereço de lazer de milionários norte-americanos,
começaram a admitir o registro de empresas offshore e ofereceu vantagens, como
tributação zero, desde que a empresa mantivesse ali apenas registros, não
atividades reais.
Ilhas Virgens é um território ultramarino britânico, seus
moradores são súditos da Rainha Elisabeth, assim como os ingleses, mas têm
autonomia administrativa. A moeda oficial é o dólar, o que mostra a influência
dos vizinhos Estados Unidos.
Sobrou pouco da cultura inglesa, como os automóveis
circulando na pista da esquerda, assim como na Inglaterra. Mas a maioria dos
carros usados aqui é fabricada nos Estados Unidos, e tem volante também no lado
esquerdo do veículo, o que provoca alguma confusão a quem não está acostumado.
Mão inglesa com carro americano.
Talvez por isso é que existam algumas placas avisando:
mantenha-se à esquerda. Outra placa curiosa é a que informa a rota de tsunami.
Os moradores contam que nunca houve ondas gigantes por lá,
mas, depois da tragédia de 2004 na Ásia, a administração pública decidiu
indicar a rota de fuga, em caso de tsunami.
A direção é o alto do morro, de onde se tem uma visão
belíssima das Ilhas Virgens. São muitas. Tanto que o primeiro europeu a chegar
aqui, Cristóvão Colombo, em 1493, deu ao local o nome de Santa Úrsula e Suas
Mil Virgens.
No local, viviam índios, depois vieram espanhóis, holandeses,
dinamarqueses, ingleses e americanos. O pirata inglês Edward Teach,
conhecido como Barba Negra, viveu por aqui. Segundo a lenda, Road Town era a
base de onde Barba Negra saía para atacar navios franceses.
Com o ciclo da cana, vieram os escravos negros, para
trabalhar nas fazendas locais. Com a liberdade, houve uma reforma agrária, e os
negros passaram a ter pequenas propriedades.
A história das Ilhas está contada em uma grande pintura, no
alto de um morro, ponto turístico dos milhares que vêm aqui todas as semanas,
muitos deles em cruzeiros marítimos.
O
dinheiro do turismo e das taxas de empresas atrai também pequenos comerciantes
e trabalhadores do mundo todo. Conversei com um jovem que veio de Granada, e
trabalha em um resort. Recebe cerca de 2.500 dólares, o salário mínimo daqui, e
nas horas vagas vende cup cake perto de uma marina: 2 dólares cada um.
A renda extra se justifica: o custo de vida nas Ilhas pode
ser dimensionado pelo preço de um litro de suco de laranja no supermercado: o
equivalente a 15 reais.
Uma amiga dele, funcionária de uma marina, ficou
impressionada ao saber que, no Brasil, o salário mínimo é de 300 dólares.
“Vi o filme ‘Rio’ e tenho vontade de conhecer seu país. Mas,
com esse salário, deve ter muita gente pobre lá.”
Em uma praia, vi a bandeira brasileira, colocada ao lado da
bandeira das Ilhas Virgens Britânicas numa barraca que vende suvenires. “Os
brasileiros são muito bons, amigos, gosto deles. Mas não gostaria de morar no
seu país. Soube que tem muitos ladrões nas ruas”, diz o dono da barraca, que
usa uma bandana de pirata.
Numa quadra comercial, o dono de uma loja de acessórios para
celulares, conta que veio da Palestina às Ilhas Virgens por causa dos dólares.
“O poder de compra é alto”, conta.
O vietnamita Pituong Nguyen saiu da cidade de Camau para
abrir um restaurante de comidas rápidas, tipo bandejão, mas sem balança, onde o
prato mais barato sai por R$ 24,00 – preço incrivelmente baixo para os padrões
locais.
De domingo a domingo, atende turistas do mundo inteiro e
também moradores da ilha, muitos imigrantes como ele.
Domingo de manhã, em Road Town, veem-se homens e mulheres bem
vestidos, descendo dos carros de terno e vestidos longos, para ir a uma das
muitas igrejas locais. A maioria é protestante, mas há também católicos e
anglicanos.
Uma faixa perto do centro esportivo anuncia um festival
gospel.
A religião ocupa um grande espaço nesta pequena cidade, onde
os homens de negócios nem precisam vir para abrir ou movimentar suas empresas.
Todo o serviço é feito por procuradores. O representante da
Empire Investment Group, por exemplo, assinou o termo de venda da empresa por
229 milhões de dólares à Rede Globo.
O mesmo documento tem a assinatura dos procuradores de outra
empresa de paraíso fiscal, a Globinter Investments, das Antilhas Holandesas,
controladora da Empire.
Como compradores, assinam Roberto Irineu Marinho e João
Roberto Marinho, donos da TV Globo. Oficialmente, a Globo estava ampliando sua
atuação no mercado internacional de televisão.
Na verdade, as três empresas eram da mesma família Marinho. O
contrato era apenas uma manobra para esconder da Receita Federal os impostos
devidos pela aquisição dos direitos de transmitir a Copa do Mundo de 2002 para
o Brasil.
Com suas praias belíssimas, Road Town poderia até ser cenário
de novela, mas, em termos de qualidade de produção de TV, a Globo não teria
nada para comprar ali. Muito menos por 229 milhões de dólares em dinheiro da
época.
Como a Receita Federal descobriria mais tarde, o contrato que
tem a assinatura dos filhos de Roberto Marinho era pura ficção, nada mais natural
no país onde o slogan oficial é “Ilhas Virgens – Segredinhos da Naturieza”.
Fonte: Diário
do Centro do Mundo.