Este
é um novo texto da série de reportagens sobre a verdadeira história da crise de falta de água em São
Paulo. Foi
o quarto projeto financiado pelos leitores do DCM através de crowdfunding no
site Catarse. De onde veio isso tem mais. Fique ligado.
A
história da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp)
começa 42 anos atrás, em 1973, quando foi criada como uma empresa pública por
meio da Lei Estadual nº 119 de 29 de junho. O governador da época era Laudo
Natel, que foi presidente do São Paulo Futebol Clube e responsável pela
unificação de onze usinas hidrelétricas que deram origem à Companhia Energética
de São Paulo (CESP).
Seu primeiro presidente foi o general Luiz Phelippe Galvão
Carneiro da Cunha, que em 1977 saiu para comandos militares, abrindo espaço
para o trabalho de engenheiros.
Um ano antes da criação da Sabesp, a distribuição de água era
feita pela empresa municipal SAEC. De acordo com um estudo da Secretaria de
Planejamento do Estado, essa instituição tinha perdas de água estimadas em 30%
e uma previsão de reduzi-las em até 20% na década de 1980. Em 2014, a Sabesp
aumentou as perdas por vazamentos para 36%, enquanto ocorre a maior seca no
Sudeste em 84 anos.
A realidade das estatais na época da ditadura militar mudou
com a abertura democrática de 1985 e com as mudanças econômicas do governo
Fernando Collor em diante.
Fernando Henrique Cardoso viria com a ideia de privatizar boa
parte delas, vendendo essa prática como a solução para todos os males
econômicos do mundo.
A descentralização dos recursos hídricos
A companhia abriu suas ações para a iniciativa privada em
1994, durante o governo de Luiz Antônio Fleury Filho (PMDB). Fleury iniciou o
Projeto Tietê, uma série de iniciativas malfadadas para despoluir o rio
transformado em esgoto. Na época, a Sabesp conseguiu um empréstimo com órgãos
internacionais, principalmente o banco japonês JBIC.
A verba só foi liberada pelo governo FHC quando seu sucessor,
o tucano Mario Covas, assumiu. Nem Fleury, nem Covas, nem Serra e nem Alckmin
mudaram a situação de calamidade.
Em 1995, a Sabesp passou a descentralizar sua gestão,
baseando-se em bacias hídricas para abastecer o estado. Foi desta maneira que
ela se dividiu unidades de negócio que se são adequadas para casa região,
seguindo demandas ambientais e sociais impostas pelo governo vigente.
Com essa reestruturação, a Sabesp fez seu IPO – oferta pública
inicial – na Bovespa em 2002 e passou a ter suas ações listadas na Bolsa de
Valores de Nova York, a NYSE.
A Sabesp, então, foi privatizada?
Não é correto dizer que a companhia estatal foi privatizada
porque o acionista majoritário atualmente continua a ser o próprio governo
paulista. As ações listadas em bolsa excedentes pertencem a investidores
minoritários. Portanto, a designação correta que podemos dar a Sabesp é que ela
é uma empresa de gestão de recursos hídricos e saneamento de capital misto.
Se a Sabesp então tem uma companhia com participação privada,
ela já tem uma agência independente que regule suas ações, como é o caso da
Agência Nacional de Petróleo (ANP) e a Petrobras, correto?
Não.
Por
pelo menos cinco anos, desde a abertura das ações em bolsa de valores, a
empresa operou sem nenhum órgão regulador, exceto instituições como a Associação Brasileira de Ensaios Não Destrutivos (ABENDI).
Essa mesma instituição foi denunciada ao Ministério Público por aprovar
empresas em 38 licitações sendo que seus diretores estão diretamente
relacionados com elas, num rombo de pelo menos R$ 1,4 bilhão em contratos para
conter vazamentos de água.
Uma agência foi criada em 2007 pela Lei Complementar
1.025/2007 regulamentada pelo Decreto 52.455. A Agência Reguladora de
Saneamento e Energia do Estado de São Paulo, chamada de ARSESP, é vinculada à
secretaria de Energia e, por meio de delegação da Aneel, fiscaliza as empresas
de abastecimento de água, as de gás canalizado e as distribuidoras de energia
paulistas.
Desta forma, a Sabesp não foi totalmente privatizada, mas
demorou pelo menos cinco anos para ter uma auditoria capacitada para sua
gestão. Os diretores da Arsesp são escolhidos pelo governo estadual.
As contradições problemáticas da Sabesp
O
advogado Vladimir Pinheiro tem 46 anos e foi um dos responsáveis pela
elaboração da Lei Federal de Saneamento Básico entre 2003 e 2010. O DCM foi
conversar com ele para entender algumas contradições que existem na Sabesp após
a entrada de investimentos privados na empresa.
De acordo com o advogado, existe um estudo na Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) que relaciona o aumento das tarifas da água para
além da inflação brasileira com o crescimento da atratividade da companhia no
mercado de capitais. “O autor do estudo é um professor de métodos quantitativos
e ciências sociais. No levantamento é possível verificar que o aumento de preços
está diretamente relacionado com o desempenho da Sabesp na bolsa”, diz.
A questão do desempenho das ações da empresa gestora de
recursos hídricos é só um dos indícios de um problema maior. Pinheiro questiona
o caráter de capital misto da companhia. “Existem dois modelos neste cenário.
Ou a empresa é privada, com forte regulação externa, ou a gestão é pública sem
interesse no lucro. A Sabesp não é nenhuma das duas coisas. Isso existe porque
o faturamento da empresa está vinculado à água que ela vende. Até o esgoto é
incluído no mesmo cálculo. Atualmente, ao receber um comunicado de que é
necessário fazer um racionamento em São Paulo, as receitas e as ações deveriam
cair. Mas não é o que acontece, curiosamente”, aponta.
Em outras grandes metrópoles, a gestão da água é
completamente diferente de São Paulo. No caso de Nova York, uma empresa pública
é responsável pelo fornecimento, sem fim de lucro. Em Paris e em Berlim, eram
empresas privadas que forneciam recursos hídricos e, recentemente, elas foram
estatizadas. O nome da companhia responsável pela água na França é Eau de
Paris, que foi privatizada por 20 anos, não conseguiu bons resultados com
aumentos de tarifas e retornou ao controle do governo.
“A
Sabesp cobra esgoto mais caro, vence concorrência na gestão de águas
subterrâneas, como ocorreu com a ABAS (Associação Brasileira de Águas
Subterrâneas) e ainda desestimula a água de reuso, práticas que poderiam evitar
a crise hídrica. Convencer as pessoas a poupar é uma das coisas que não passa
pela cabeça da empresa, porque ela sempre precisa vender mais água. É essa a
lógica”, diz Vladimir Pinheiro.
O único órgão que poderia regular as ações privadas da Sabesp
seria a ARSESP. No entanto, seus membros são nomeados pelo governo do estado, o
mesmo que é acionista majoritário. Desta maneira, há outro nítido conflito de
interesses na empresa, tanto se ela caminhar para o interesse público como se
ela for se comportar como uma instituição privada.
“O que acontece com a Sabesp é como se a raposa tomasse conta
do galinheiro. Ou você tem um consórcio privado regulado, ou você tem uma
empresa pública guiada por outros interesses que não sejam o lucro. O regulador
é necessário para dar credibilidade para as metas da empresa, justificando o
investimento do acionista. Como o governo representa tanto a Sabesp quanto a
agência, isso não é possível”, afirma o advogado.
A Sabesp não tem concorrência e sua agência reguladora possui
integrantes que possuem os mesmos interesses dentro da empresa. Isso é
contraproducente porque ela é o monopólio de fornecimento de água em São Paulo.
Numa lógica capitalista comum, a Sabesp teria concorrentes que a forçariam a
melhorar seu desempenho técnico ou a reduzir seus preços de acordo com o quadro
total.
Além da ARSESP e da Sabesp, há uma peça no quebra-cabeça que
poderia resolver os problemas no conflito de interesse entre investimentos
privados, as instituições e o governo estadual.
A prefeitura poderia cobrar mais a Sabesp pelo
fornecimento de São Paulo
A
Sabesp não atende a capital paulistana sem que exista um contrato para seus
serviços. O responsável pelo elo que liga a empresa do governo estadual, que
monopoliza o fornecimento de água, e a cidade, bem como outros municípios, é a
prefeitura.
A instituição contratante é a mesma responsável pelo
município. Então ela deveria pelo menos exigir a regulação da Sabesp, não é?
Não é o que acontece na cidade e em outros municípios a realidade é diferente.
“Em Recife, por exemplo, há uma grande secretaria municipal focada no
saneamento. E a Sabesp deles chama-se Compesa, ligado à cidade. Eles não
dependem necessariamente do governo do estado”, diz Vladimir Pinheiro,
relembrando de exemplos diferentes no nordeste brasileiro.
Na gestão Marta Suplicy, em 2004, foi arquitetada a criação
de uma agência vinculada à prefeitura, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo
impediu o progresso da iniciativa por romper com cláusulas impostas pelo
governo do estado.
Na atual crise, a prefeitura ajudaria a cidade toda se
pressionasse o governador, a agência reguladora e a própria Sabesp.
Um problema recorrente
A
seca do sistema Cantareira provavelmente obrigará todas as instâncias do Estado
a investir para evitar consequências mais graves da crise. Trata-se de um caso
bem conhecido de privatização de lucros e socialização de prejuízos porque o
colapso hídrico de São Paulo certamente afetará o PIB do país.
Os problemas de investimento na contenção de vazamentos, só
da Sabesp, chegam a R$ 1,4 bilhão. Se vincularmos este escândalo ao caso da
Saae, em Sorocaba, que engloba as mesmas empresas da ABENDI, o dinheiro
desviado soma mais de R$ 2 bilhões. Se foi injetada verba e a perda de água não
diminuiu no fornecimento, é porque provavelmente alguém embolsou sem que o
problema tenha sido solucionado. A Sabesp lucra com venda de volumes de água, e
para ela não interessa o racionamento ou o bom uso dos recursos, mesmo que isso
esteja provocando seca agora.
Tudo
isso ocorre não apenas pela lógica do lucro empresarial privado, mas porque a
empresa responsável pelo monopólio das águas de 364 dos 645 municípios
paulistas, de acordo com o site oficial, não recebe a regulação adequada. Não há
quem questione seus métodos dentro do estado de São Paulo.
“Este é um problema recorrente no Brasil. No atual escândalo
da Petrobras, quantas vezes você ouviu o nome da Agência Nacional de Petróleo,
a ANP? Eu não ouvi nenhuma vez. E ela deveria fiscalizar, não deveria?”,
finaliza o advogado Vladimir Pinheiro, especialista em saneamento.
Fonte:
Diário
do Centro do Mundo.