DE ESTOCOLMO.
Em
sueco, a palavra ”skatt” tem dois significados, que no juízo apressado de um
forasteiro podem parecer conceitos tão distantes entre si como o céu e o
inferno: ”impostos” e ”tesouro”.
Mas
como qualquer espantado alienígena constata ao chegar à Suécia, o termo
”impostos” tem por aqui uma conotação visceralmente positiva. Na lógica da
maioria dos suecos, assim como dos demais povos da Escandinávia, os tributos
são o preço justo que se paga por uma sociedade mais humana, igualitária e
harmônica – e por isso menos violenta. Mesmo quando se cobra, como é o caso
escandinavo, um dos impostos mais elevados do planeta.
O
pensamento escandinavo é uma esfinge de enigma quase indecifrável para muitos
povos. A começar pelos seguidores do credo americano de que, quanto mais baixos
os impostos, melhor.
Mas a primeira explicação é
elementar: paga-se impostos de bom grado por aqui, dizem os suecos, porque as
coisas funcionam. E funcionam bem. O sistema de saúde pública proporciona
atendimento de qualidade a todos, independentemente da renda de cada um. A
educação, gratuita e de alto nível, garante oportunidades iguais de acesso de
todos os cidadãos ao ensino, do pré-escolar à universidade. As cidades são
limpas. Os transportes públicos são organizados e eficientes – e em nenhuma
estrada da Suécia paga-se pedágio. A lista é longa.
A segunda explicação do
enigma requer um esforço de compreensão do sentimento de humanidade e
solidariedade que molda o pensamento escandinavo.
”Tenho
orgulho de pagar impostos”, resume Robert Windahl, o Robben, popular garçom do
pub local que frequento em Estocolmo. É uma frase que se ouve com frequência
anormal no país. Robben explica: ”Se você tem uma criança com alguma doença
grave, ou se não ganha um salário particularmente alto, você pode se sentir
seguro na Suécia. Se fosse nos Estados Unidos, você estaria perdido. Mas
acreditamos que, em nossa sociedade, todos têm direito a uma vida digna.”
É
uma carga tributária alta demais para cumprir esse ideal? – pergunto.
Atualmente, a carga tributária na Suécia é de cerca de 45% do Produto Interno
Bruto (PIB), contra cerca de 36%, no caso do Brasil.
”Certamente
não”, ele diz. ”E todos se beneficiam do sistema, que é universal. Ou seja, os
mais ricos pagam mais impostos, mas também não precisam pagar para que seus
filhos estudem até à universidade, por exemplo. E se eu mesmo resolver ser médico,
posso começar a estudar amanhã, sem gastar uma krona (coroa sueca)”.
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verdade que pagamos um dos impostos mais altos do mundo”, continua ele. ”Mas
como mostram várias pesquisas, os escandinavos estão sempre no alto da lista
dos povos mais felizes do mundo”, lembra Robben, que paga 40% de seus
vencimentos ao fisco.
Na
Suécia, a origem do desenvolvimento do welfare state (Estado de bem-estar
social), financiado pelos altos impostos, foi marcada por uma expressão cunhada
por Per Albin Hansson, o legendário primeiro-ministro social-democrata:
Folkhemmet, ou ”Lar do Povo”. A expressão tornou-se o símbolo da visão de
sociedade da social-democracia sueca: as pessoas deveriam sentir-se tão seguras
na sociedade como se sentiam no interior de seus próprios lares.
”Um
bom lar não tem membros privilegiados ou rejeitados; não tem favoritos nem
filhos postiços. Nele, uma pessoa não olha para a outra com desdém; nele,
ninguém tenta obter vantagens às custas do outro; nele, o forte não oprime nem
rouba o fraco. Em um bom lar existe igualdade”, disse Hansson, em 1932, no
Parlamento sueco. O conceito foi o embrião do famoso modelo social sueco, que
iria se tornar um exemplo para o mundo.
De
lá para cá, o Estado-providência sueco tem sofrido ajustes. Crises econômicas
sacudiram o paraíso, que continua no entanto vigorosamente próspero, e novos
desafios se impõem diante do modelo e seu futuro. Como observaram os
consultores do Boston Consulting Group em conferência recente aqui em
Estocolmo, o envelhecimento populacional na Suécia é uma das ameaças que pairam
sobre o modelo: daqui a cerca de 15 anos, estima-se, cada cidadão sueco estará
trabalhando para financiar, com seus impostos, um conterrâneo aposentado.
Apesar
dos ajustes, até o momento o welfare state sueco permanece generoso, embora
menos generoso do que já foi. E apesar das vozes discordantes, cerca de 75 por
cento dos suecos estariam na verdade dispostos a pagar impostos ainda mais
altos para manter a sociedade justa, próspera e eficiente que criaram – segundo
pesquisa realizada em 2010 pelo sociólogo sueco Stefan Svallfors.
Sim:
testemunhei cenas sobrenaturais nos últimos anos, quando vi um sem-número de
cidadãos suecos reclamando, nos jornais e noticiários de TV, a cada vez que o
governo de centro-direita – despachado do poder nas eleições de setembro deste
ano – anunciava um pequeno corte nos impostos.
”A
redução de impostos significa que eu passo a ter 600 coroas (cerca de 200
reais) a mais no bolso”, disse na TV sueca, na época, um dos cidadãos
entrevistados. ”Para mim, que já ganho um bom salário, essa quantia extra não
faz tanta diferença. Mas faz uma diferença enorme para a sociedade, e por isso
acho que esse dinheiro seria melhor empregado para garantir a qualidade das
nossas escolas, hospitais e serviços em geral”.
Nas
ruas de Estocolmo, voltei a ouvir a mesma argumentação: baixar os impostos, no
entender de grande parte dos cidadãos, faz por exemplo uma diferença brutal
para o nível de qualidade da educação, que impulsiona a prosperidade do país.
Põe em risco a essência igualitária da sociedade sueca, e aumenta a distância
entre ricos e pobres. Menospreza a dignidade da vida dos excluídos, dos
doentes, dos desesperados.
Por
isso, também parece sobrenatural imaginar um país onde os partidos políticos
fazem campanha eleitoral prometendo aumentar, e não baixar, os impostos. Mas
assim é a realidade sueca: qualquer analista político americano ficaria
perplexo ao saber, por exemplo, que a própria coalizão de governo de
centro-direita sueca foi às urnas, este ano, defendendo uma alta nos impostos:
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bom termos impostos, para que tenhamos segurança social, educação e saúde”,
disse na TV sueca o então ministro das Finanças, Anders Borg. É certo que nem
tudo é unanimidade no reino dos suecos, quando o assunto são os altos impostos.
Muitos são os que apóiam o receituário aplicado nos recém-encerrados oito anos
de poder da centro-direita, que defende a implementação de ajustes necessários,
na sua visão, para criar um modelo sueco renovado diante dos desafios dos novos
tempos.
Mas
a recente queda nos índices de desempenho escolar, assim como outros problemas
na estrutura do modelo social, renovaram, segundo pesquisas recentes, o ânimo
dos suecos para pagar índices elevados de impostos. Emblemática é a frase
estampada esta semana na coluna política do jornal Aftonbladet – a mesma frase
que se lê originalmente, aliás, em uma inscrição no prédio da Receita Federal
americana (IRS) em Washington: ”Impostos são o preço que se paga por uma
sociedade civilizada.”
Os
impostos sobre herança foram abolidos na Suécia em 2004, como medida destinada
a proteger empresas e empregos na esteira da crise econômica dos anos 90 –
quase a metade dos empresários que geravam até 60% dos novos empregos no país
estava acima dos 50 anos de idade, na época. E a taxação sobre fortunas foi
cancelada em 2007, a fim de evitar a saída de empreendedores do país.
A
estrutura tributária progressiva, porém, é desenhada para uma melhor
distribuição de renda: quem ganha muito mais, paga muito mais impostos.
As
taxas municipais variam entre 29 e 36 por cento da renda de um indivíduo,
dependendo do local em que a pessoa vive. Além disso, para os que ganham acima
de 35,5 mil coroas suecas mensais – que é o salário médio de um professor
universitário, por exemplo -, impostos estatais entre 20 e 25 por cento são
cobrados a partir de determinados níveis de rendimento. A carga tributária é
aumentada ainda pelo imposto sobre valor agregado, uma taxa de 25% que incide
sobre a compra de alimentos e a maioria dos produtos e serviços em geral.
Em contrapartida,
todos têm direito a uma ampla rede de proteção, do berço ao túmulo.
Quando
uma criança nasce na Suécia, os pais têm direito a uma licença parental
remunerada de 480 dias. As creches pré-escolares são largamente subsidiadas
pelo governo, e os pais pagam apenas oito por cento do custo mensal.
A
partir do dia do nascimento, cada criança recebe um subsídio mensal do governo
no valor de 1.050 coroas suecas (aproximadamente 355 reais).
Após
completar 16 anos de idade, cada criança passa a receber um subsídio mensal do
governo no mesmo valor, como assistência financeira enquanto completa seu
período de estudos.
O
tratamento dentário é gratuito para crianças e adolescentes até os 18 anos de
idade. Eles também podem ter aparelhos dentários financiados pelo governo
regional: quando os especialistas julgam necessária a correção dos dentes, o
paciente recebe um ”cheque saúde dos dentes” para custear os gastos com o
ortodontista de sua escolha.
Quando
as crianças têm problemas graves de visão, também é o governo regional que paga
os óculos de grau. Para famílias com situação econômica mais desfavorável, os
pais de crianças com deficiências de visão mais comuns podem contactar os
serviços sociais, que então financiam os óculos.
Não
existem mensalidades escolares. A partir dos seis anos de idade, todas as
crianças têm acesso gratuito à educação, que é obrigatória até o último ano do
ensino médio. As escolas fornecem ainda todo o material escolar.
Se
decidem cursar a universidade – que também é gratuita – os estudantes suecos
têm direito a uma assistência financeira mensal, até completar os estudos. Esta
assistência é composta por um subsídio de cerca de mil reais por mês, além de um
empréstimo no valor aproximado de 2,3 mil reais mensais. O prazo para o
reembolso do empréstimo é o dia em que o ex-estudante completa 60 anos de
idade.
O
sistema de saúde é também amplamente subsidiado, e a taxa de internação em um
hospital é de 80 coroas suecas (cerca de 27 reais) por dia.
Já o
seguro-desemprego é voluntário – ou seja, o trabalhador deve se inscrever em
instituições específicas para ter direito ao benefício, e pagar uma
mensalidade. Estas instituições são conhecidas como ”A-Kassa” (Arbetslöshetskassor),
e muitas são administradas por sindicatos. No pacote básico, a mensalidade é de
90 coroas suecas mensais (cerca de 13 dólares). Para poder usufruir de um
salário-desemprego maior do que o básico, o trabalhador deve fazer um seguro
suplementar, com contribuições mensais proporcionais ao salário. Quando perde o
emprego, um trabalhador pode receber o salário-desemprego por até 300 dias
úteis.
Para
famílias mais pobres ou com problemas econômicos temporários, os governos
municipais prestam assistência sob a forma de apoio financeiro com base em
avaliações individuais. Este apoio inclui recursos para despesas básicas, com a
finalidade de garantir um padrão de vida razoável.
Como
um todo, é um sistema que mantém alta credibilidade: em 2013, uma pesquisa
apontou que 86% dos suecos confiam no Skatteverket, a autoridade fiscal sueca.
”As
pessoas confiam no fato de que o Estado, os políticos e a administração pública
vão empregar o dinheiro de seus impostos de maneira eficiente”, diz o
jornalista e historiador Henrik Berggren. ”Em segundo lugar, a questão da
igualdade social é extremamente importante na Suécia”, observa ele.
Mas
como o ser humano é o mesmo, e fraudadores de impostos em potencial germinam em
todas as latitudes quando o clima é propício, a Suécia tem um poderoso e
eficiente sistema para evitar a sonegação fiscal.
Descuidos
ou más intenções, como informações errôneas e deduções inválidas na declaração
de renda, costumam ser punidos com multas de 40% sobre o valor do imposto a ser
pago – ou, para casos extremos, com o xadrez.
Não se brinca com
as garras do sempre atento leão sueco, que parece ter mil olhos.
Fonte:
Diário
do Centro do Mundo.