Você empresta
a sua caneta para outra pessoa sob a condição de que ela seja usada em seu
nome. Mas, em determinado momento, a pede de volta porque descobre que pode
escrever você mesmo pelo menos parte de sua própria história. Nessa hora, a
pessoa fica indignada, irritada, raivosa. Não devolve e, pior: diz que a caneta
agora é dela.
Em resumo, é isso o que a Câmara dos Deputados fez, nesta
terça (28), ao sustar os efeitos do decreto presidencial que cria a
Política Nacional de Participação Social – que tem por objetivo
desenvolver mecanismos para acompanhar, monitorar, avaliar e articular
políticas públicas. E fez com o sangue nos olhos do presidente da casa,
Henrique Eduardo Alves (PMDB), que culpa o PT pela derrota que sofreu para o
governo do Rio Grande do Norte.
Dessa forma, os
nobres parlamentares passam por cima do artigo 1o, parágrafo único, da Constituição Federal: “Todo
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente''.
Desde
que o decreto foi criado, apareceu uma miríade de declarações de deputados e
senadores, dando voltas e voltas para construir justificativas estranhas,
dizendo que garantir instrumentos de participação social é assassinar a nossa
democracia (he), transformar o Brasil em uma ditadura bolivarianista
venezuelana (hehehe) e instalar o regime cubano por aqui (kkkkkkkk).
Minha crítica ao decreto é exatamente o oposto: ele é tímido
demais. Na prática, regulamenta os conselhos e comissões que não possuem
regulamentação e abre a possibilidade (não obriga) a criação de outros. E
vem tarde: afinal tudo o que ele organiza já está previsto na Constituição
Federal (aquele documento de 1988 que ninguém gosta de levar muito a sério) e não
avança tanto quanto seria necessário, nem responde a demandas das manifestações
de junho do ano passado. É, portanto, um primeiro passo.
O decreto 8243/2014 não troca a democracia representativa
pela direta em nosso país. Até porque não somos uma sociedade suficientemente
desenvolvida, com acesso pleno à informação e consciência de seus direitos e
deveres para aposentar nossos representantes. Isso é um sonho ainda distante.
Este decreto não cria instâncias, órgãos e cargos
automaticamente, não diminui atribuições do Congresso Nacional ou interfere em
outro poderes e não centraliza o controle da sociedade civil em ONGs que querem
fazer a revolução.
O mais engraçado é que boa parte dos parlamentares
age como comentarista de internet: não entendeu bulunfas de um texto e
repete frases feitas contra ou a favor do decreto. O que mostra, novamente, que
o Congresso é espelho da sociedade brasileira.
Peço licença para retomar o que já havia escrito na
época. Levando a sério alguns discursos que estão circulando nos plenários da
Câmara e na imprensa (meu Deus, como tem jornalista que não se digna a ler o
papel antes de falar groselha…), não poderíamos ter orçamento participativo,
conselhos ligados à defesa dos direitos humanos (responsáveis por monitorar
políticas como a de combate ao trabalho infantil), muito menos conselhos
ligados à educação e saúde – bandeiras importantes de parlamentares marinistas,
aecistas, dilmistas, lucianistas e eduardojorgistas, entre outros, durante a
redemocratização.
Conselhos são um espaço em que governo e a sociedade discutem
políticas públicas e sua implantação, e estão presentes desde o âmbito local –
na escola, no posto de saúde – até o federal, onde reúnem representantes de
entidades empresariais, organizações da sociedade e governo. Alguns são
obrigatórios, exigidos por leis federais, mas cada município e estado pode
criar os que julgar necessários.
Quem escolhe? Há diversas formas. O ideal é que seja por
eleição, como ocorreu em São Paulo recentemente com as subprefeituras e áreas
temáticas.
É óbvio que, para essas arenas de participação popular serem
efetivas, precisam deter algum poder e não serem apenas locais de
discussão e aconselhamento. E isso gera conflito entre novas instâncias de
representação e as convencionais.
Afinal, senadores, deputados, vereadores, membros das esferas
federal estadual e municipal e quem sistematicamente ganha com a proximidade a
eles, enfim, o grupo de poder estabelecido, tende a não gostar da ideia de ver
outros atores ganharem influência, outros que não fazem parte do
joguinho. Há gente que teme, com o monitoramento por parte do povo, ficar
sem o instrumento clientelista de poder asfaltar uma determinada rua e não
outra, empregar conhecidos e correligionários.
Durante décadas, brigamos para a implantação de instâncias de
participação popular. E, agora, que elas começam a ser discutidos em
determinados espaços, ainda que de forma tímida e por conta de intensa pressão
social, as propostas correm o risco de serem congeladas se o Senado confirmar a
decisão da Câmara.
E olha que nem estamos discutindo o vespeiro real. Pois,
mesmo que tudo isso aproxime as pessoas da gestão de suas comunidades, os
conselhos ainda são espaços de representatividade e não de participação direta.
Com o desenvolvimento de plataformas de construção e
reconstrução da realidade na internet, as possibilidades de interação popular
deram um salto.
Se tomarmos, por exemplo, as experiências de “democracia
líquida'' envolvendo os Partidos Piratas na Europa – com seus
sistemas que utilizam representantes eleitos pelo voto direto, mas também ferramentas
possibilitando ao eleitor desse representante ajudá-lo a construir
propostas e posicionamentos de votação a partir do sofá de sua
sala – percebemos que há um longo caminho a percorrer. Podemos chegar a um
momento em que a representação política convencional se esvazie de sentido. Não
é agora, nem com esse decreto. Mas, quem sabe, com uma sociedade mais
consciente.
Como já disse neste espaço, muitos desses jovens que foram às
ruas em junho do ano passado, reivindicando participar ativamente da política
não estavam pedindo a mudança do sistema proporcional para o distrital puro ou
misto, como o governo federal e o parlamento pensam. Queriam mais formas de
interferir diretamente nos rumos da ação política de sua cidade, estado ou
país. Mas não da mesma forma que as gerações de seus pais e avós. Porque,
naquela época, ninguém em sã consciência poderia supor que criaríamos outra
camada de relacionamento social, que ignorasse distância e catalisasse
processos. Pois, quando a pessoa está atuando através da internet, não reporta
simplesmente. Inventa, articula, muda. Vive.
Ou seja, plebiscitos, referendos, projetos de iniciativas
populares, conselhos com representantes por tema ou distrito são os primeiros
passos, não os últimos. Com a próxima geração, a política será radicalmente
transformada pela mudança tecnológica. Participar do rumo das coisas a cada
quatro anos não será mais suficiente. Pois, em verdade, nunca foi. Iremos
participar em tempo real.
Por fim, aos líderes políticos, econômicos e sociais que
acham que todo poder emana deles próprios, um lembrete: talvez não seja hoje,
mas a gente vai querer as nossas canetas de volta.
Fonte:
Uol
Notícias.