Jaílson
das Neves se lembra da última vez que a viu com vida; amigas e testemunha do
crime contam como foram seus últimos momentos.
‘Ela passou a tarde de sexta-feira fora de casa.
Quando chegou, dei o remédio dela, a coloquei na cama e dei um beijo de boa
noite. Saí pra trabalhar. Estava voltando de férias naquele dia e não queria
chegar atrasado. Achei que ia encontrar minha mulher quando voltasse pra casa,
na hora do almoço. Mas não deu. Só fui vê-la de novo naquela tarde, numa foto
que minha prima mostrou na internet. Ela estava toda arrebentada, desfigurada.
Mas deu pra reconhecer. Vivemos juntos 18 anos, não tem como não reconhecer. O
resto é a história que você já conhece”.
O relato do porteiro Jaílson Alves das Neves, de 40
anos, lembra como foi seu último contato com a mulher, a dona de casa Fabiane
Maria de Jesus, de 33 , linchada no último sábado ao ser confundida com uma
criminosa — que, segundo a polícia, nem existe — em Guarujá, no litoral sul de
São Paulo.
Quando estava passando por um surto, como na semana
passada, o que Fabiane mais queria era sair de casa. Vinha sendo assim nos
últimos 15 anos, desde que foi diagnosticada com transtorno bipolar, após
sofrer um aborto natural do que seria seu primeiro filho. A dona de casa dava
voltas de bicicleta por Guarujá, ia à igreja e visitava amigos e parentes. No
meio do caminho, poderia abraçar algum dos muitos conhecidos do bairro
Morrinhos ou soltar uma ou outra frase desconexa. O fim das crises era
basicamente o mesmo: mais calma, a mulher voltava para casa, onde Jaílson
pacientemente a acolhia.
Uma
semana sem remédios
As peregrinações vinham sendo constantes nos
últimos meses, segundo familiares de Fabiane. No fim do ano, ela passou uma
semana sem os remédios que costuma tomar três vezes ao dia. Jaílson não
conseguiu achar a receita, necessária para obter a medicação no posto de saúde.
Para sua surpresa, a dona de casa estava se sentindo melhor do que o de
costume. Um bem-estar que durou poucos dias. Embora tivesse voltado a ser
medicada, como pedira o médico, Fabiane continuava tendo surtos. Na tentativa
de sair de casa, em abril, escorregou do segundo andar e machucou o joelho
direito. Dias depois, tropeçou na rua e queimou, no asfalto quente, a parte
inferior do pulso esquerdo.
Foram essas duas marcas que Jaílton procurou no
corpo de Fabiane, no domingo de manhã, para reconhecê-la na UTI do Hospital
Santo Amaro, para onde a mulher foi levada após ser espancada no meio da rua.
— Não pude me despedir da minha mulher. Minhas
filhas não vão poder passar o Dia das Mães com a mãe dela. Mas eu espero que a
morte da Fabiane não seja em vão. Espero que as pessoas percebam que fazer
justiça com as próprias mãos é uma coisa errada. Não vou deixar a morte dela
cair no esquecimento. Isso não pode acontecer com mais ninguém — disse Jaílson
na última terça-feira, à frente de um protesto organizado por seus parentes, na
frente do Cemitério Jardim da Paz, onde a mulher havia sido enterrada no dia
anterior.
Uma série de desencontros e coincidências levou Fabiane
a estar diante de uma multidão enfurecida pelo boato de que crianças da cidade
corriam perigo de serem sequestradas por uma mulher que as usaria em rituais de
magia negra.
Sábado, por volta de 8h, Fabiane decidiu dar uma
volta, como costumava fazer quando não estava se sentindo bem. Foi até a Praia
de Astúrias. Lá fica a colônia de férias onde seu marido trabalha como
porteiro. Por volta de 12h, procurou Jaílson, mas ele já havia saído. Chegou a
entrar no prédio e dançar com idosos que frequentam a colônia de férias.
Depois, Fabiane se lembrou de que precisava
recuperar uma Bíblia que havia deixado na Igreja São João Batista na semana
anterior. A Bíblia, presente de um primo, sempre a acompanhava. Ela também
pretendia deixar roupas na casa de uma prima que mora em Morrinhos 3 e visitar
uma antiga amiga da família.
— Ela deixou a Bíblia na igreja por minha causa —
lembra-se a dona de casa Cristina Lucena de Andrade, de 43 anos, amiga de
Fabiane há 20. — No sábado anterior, foi meu aniversário. Ela me chamou na
igreja, abriu a Bíblia numa passagem do Eclesiastes e pediu para eu ler.
Depois, fez o último pedido: “Reza por mim”.
Com a Bíblia recuperada, Fabiane fez uma visita
para uma mulher que considerava sua segunda mãe: a aposentada Aparecida Ferreira
Lemos Osaki, de 67 anos. Aparecida notou que ela estava um pouco mais
pessimista:
— Fabiane só falava em morte e me dizia: “A Vânia
quer me levar, mãe”. Ela me chamava de mãe, às vezes, porque vi essa menina
crescer — disse Aparecida, lembrando que Vânia era uma vizinha que morreu há
mais de dez anos.
Após a visita, por volta de 14h15m, Fabiane deixou
as roupas na casa da prima e passou no Mercado e Padaria Central, na Rua 34. Ao
sair, com uma sacola de compras, ofereceu uma fruta a uma criança sentada na
calçada. Foi o suficiente para despertar a ira de uma multidão.
Embora a rua fique em uma parte bem movimentada de
Morrinhos 4, e o crime tenha acontecido na tarde de sábado, com o comércio
aberto, é difícil encontrar alguém disposto a contar o que viu no dia do
linchamento. Boa parte dos moradores teme sofrer represálias de quem participou
do ato e dos traficantes de drogas, presentes na parte mais afastada do bairro.
— Alguém gritou que ela era a sequestradora. Um
cara perguntou para ela: “Você gosta de criança?” Ela disse que sim. Depois
disse: “E quantas crianças você têm agora?” Ela falou: “Duas”. Mas estava
falando das filhas, não de crianças sequestradas. Quem perguntou achou que isso
era como se ela estivesse confessando e começou a pancadaria — contou uma
mulher, sem se identificar.
Comerciantes e moradores que tentaram parar o
espancamento foram ameaçados. Fabiane recebeu chutes, pedradas, socos,
pauladas, foi amarrada, arrastada por quase 300 metros e jogada de uma ponte.
Quem não participou de maneira direta filmou ou tirou fotos para divulgar nas
redes sociais. Foi assim que a família soube o que ocorrera.
— Vi uma pessoa compartilhando a foto no Facebook e
pensei: “Não pode ser”. Reconheci minha cunhada pelos lábios e pelo desenho do
rosto. Depois escrevi lá: “Parabéns, sociedade. Vocês mataram a sequestradora
de crianças. Só que mataram uma mulher inocente, mãe de família e que nunca fez
mal a ninguém” — disse o eletricista Nildo das Neves, de 42 anos.
Fonte: Sobral 24horas.