Na madrugada do
último domingo presenciamos o grande show que
se tornou a “ocupação” do braço armado do Estado aos territórios secularmente
marginalizados pelo poder público. Segundo a Secretaria de Segurança, foi
utilizado um grande aparato bélico e enorme contingente de policiais e
militares numa ação que teve tempo recorde na ocupação: 15 minutos. Levando em
conta a geomorfologia da Maré e a presença de grupos rivais distintos –
milicianos e duas facções inimigas –, a consolidação desses grupos armados nos
territórios que ocupam e uma população maior que 130.000 pessoas, fica difícil
não reconhecer a eficiência do plano de ocupação incurso, assim como reconhecer
que ocupar a favela nunca foi obstáculo para a polícia.
A receptividade positiva dos moradores à
presença da polícia, mesmo sendo pela forma violenta como se deu, e mesmo
cientes dos problemas que vêm ocorrendo em outros territórios ocupados pela
UPP, é sintomática no sentindo de expor um grito “silencioso” de socorro, de
liberdade, sufocado há décadas. Romperam com a tirania do tráfico, encararam um
de seus maiores algozes (a polícia), sob pena de sofrerem retaliações pelos
remanescentes do tráfico, na esperança de agora sim acessarem algo que só
conheciam nos contos de fadas das redes televisivas, faladas e escritas: a
cidadania plena.
Pouco importa os passeios à cavalos, o
direito a hastear bandeiras em mastros improvisados, os holofotes e lentes das
câmeras. Interessa de fato o direito de acessar a sua cidadania plena, o
direito de ter direito, o experimento de uma vida nova. Uma vida sem a
brevidade do presenteísmo e o pessimismo no futuro. Mas o que se percebe nos
dias que seguem após “ocupação” soa como o prenúncio de dias ainda mais
difíceis. Se antes tínhamos que dividir o território com um grupo armado
totalitário, agora estamos obrigados a dividí-lo com mais dois: outra facção
criminosa e a polícia. E logo mais, com o exército.
Não importa a maquiagem que se tenta fazer
com a presença de veículos de empresas de manutenção pública, a Maré sempre
teve acesso a esses serviços, mesmo que precariamente. Não é isso que o povo
mareense almeja. Ele almeja experimentar em sua vida cotidiana o que vem a ser
uma democracia. Democracia essa que ele quando teve acesso foi sempre em
pequenas migalhas ou de forma esquartejada.
Na noite de anteontem, por volta das 23h,
integrantes de uma antiga facção, esses sim seguros da eficiência das UPPs,
resolveram verificar de perto os efeitos da “ocupação” na Vila do João,
Pinheiros e Esperança. Passearam, “visitaram” antigos desafetos, espalharam o
medo, o terror e depois simplesmente foram embora. A polícia onde estava? Não
sabemos. Mas sabemos que na Vila do João ela não está. Poucas vezes
experimentamos uma sensação de insegurança como essa. Comerciantes temem ser
assaltados, os mais jovens temem serem alvos da vingança de integrantes de
facções rivais como ocorreu domingo no Conjunto Nova Maré, na Baixa do
Sapateiro. Tememos que nossas casas sejam furtadas, tememos que o terror se
instaure novamente, mas dessa vez, sem face, sem identidade.
O que percebemos é que toda essa operação não
passa de um grande espetáculo midiático com fins econômicos e eleitoreiros. A
“ocupação” da Maré representa o fechamento de um perímetro urbano muito
propício a entrada do capital imobiliário, industrial e comercial. Ou seja, o
Estado não está preocupado em garantir a mais de 130 mil pessoas o seu direito
de ter direito. O fato de termos tido uma postura passiva diante das diversas
intervenções violentas de controle territorial que acabaram por afetar
diretamente nosso desenvolvimento, também acabou por apregoar nossa perda de
esperança no futuro. Por isso, a “ocupação” da Maré não será uma possibilidade
de emancipação social para as pessoas em nosso território.
Mesmo assim, se sairmos às ruas inquirindo as
pessoas sobre a permanência ou não da polícia em nossas favelas, afirmo
categoricamente que a resposta será sim. Sim, porque para os favelados o que
resta é sempre o “menos pior”, porque não há esperança no ideal, no justo, no
direito. E hoje, o “menos pior” é a UPP. O Estado não abandonou a Maré por
culpa do tráfico. O tráfico apenas foi o álibi. Por uma Maré de direitos, por
uma Maré repleta de plena cidadania.
*Francisco Marcelo da Silva, 40, é geógrafo pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), mestre e doutorando em Educação pela UFF e morador da Vila do
João, uma das 16 favelas da Maré.
Fonte: Brasil 247.