Em um editorial de página inteira, a Folha de S.
Paulo justifica neste domingo 30, quando se completam 30 anos do golpe militar
no Brasil, o apoio que deu o regime. "Aos olhos de hoje, apoiar a ditadura
militar foi um erro", diz o texto. "Este jornal deveria ter rechaçado
toda violência, de ambos os lados, mantendo-se um defensor intransigente da
democracia e das liberdades individuais", prossegue o texto.
O jornal de Otavio Frias Filho ressalta que
"é fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas
opções daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas
que as atuais". De acordo com a publicação, os defensores do regime
militar, à época, "agiram como lhes pareceu melhor ou inevitável naquelas
circunstâncias". Texto defende também que repúdio ao regime é merecido,
mas que nem todas as críticas têm fundamento.
A Folha é acusada de ter colaborado com a
ditadura militar emprestando carros da empresa para que policiais do DOI-Codi,
órgão de repressão da ditadura, fizessem campana e prendessem militantes de
esquerda. Dois deles afirmam, em depoimento, ter visto caminhonetes do jornal
no prédio do DOI-Codi na rua Tutoia, no bairro da Vila Mariana, zona sul de São
Paulo, onde ficaram presos.
Leia abaixo a íntegra do editorial:
1964
O regime militar (1964-1985) tem sido alvo de merecido
e generalizado repúdio. A consolidação da democracia, nas últimas três décadas,
torna ainda mais notória a violência que a ditadura representou.
Violência contra a população, privada do
direito elementar ao autogoverno. E violência contra os opositores, perseguidos
por mero delito de opinião, quando não presos ilegalmente e torturados,
sobretudo no período de combate à guerrilha, entre 1969 e 1974.
Aquela foi uma era de feroz confronto entre
dois modelos de sociedade --o socialismo revolucionário e a economia de
mercado. Polarizadas, as forças engajadas em cada lado sabotavam as fórmulas
intermediárias e a própria confiança na solução pacífica das divergências,
essencial à democracia representativa.
A direita e parte dos liberais violaram a
ordem constitucional em 1964 e impuseram um governo ilegítimo. Alegavam fazer
uma contrarrevolução, destinada a impedir seus adversários de implantar
ditadura ainda pior, mas com isso detiveram todo um impulso de mudança e
participação social.
Parte da esquerda forçou os limites da
legalidade na urgência de realizar, no começo dos anos 60, reformas que tinham
muito de demagógico. Logo após 1964, quando a ditadura ainda se continha em
certas balizas, grupos militarizados desencadearam uma luta armada dedicada a
instalar, precisamente como eram acusados pelos adversários, uma ditadura
comunista no país.
As responsabilidades pela espiral de
violência se distribuem, assim, pelos dois extremos, mas não igualmente: a
maior parcela de culpa cabe ao lado que impôs a lei do mais forte, e o pior
crime foi cometido por aqueles que fizeram da tortura uma política clandestina
de Estado.
Isso não significa que todas as críticas à
ditadura tenham fundamento. Realizações de cunho econômico e estrutural
desmentem a noção de um período de estagnação ou retrocesso.
Em 20 anos, a economia cresceu três vezes e
meia. O produto nacional per capita mais que dobrou. A infraestrutura de
transportes e comunicações se ampliou e se modernizou. A inflação, na maior
parte do tempo, manteve-se baixa.
Todas as camadas sociais progrediram, embora
de forma desigual, o que acentuou a iniquidade. Mesmo assim, um dado social
revelador como a taxa de mortalidade infantil a cada mil nascimentos, que era
116 em 1965, caiu a 63 em 1985 (e melhorou cada vez mais até chegar a 15,3 em
2011).
No atendimento às demandas de saúde e
educação, contudo, a ditadura ficou aquém de seu desempenho econômico.
Sob um aspecto importante, 1964 não marca uma
ruptura, mas o prosseguimento de um rumo anterior. Os governos militares
consolidaram a política de substituição de importações, via proteção tarifária,
que vinha sendo a principal alavanca da industrialização induzida pelo Estado e
que permitiu, nos anos 70, instalar a indústria pesada no país.
A economia se diversificou e a sociedade não
apenas se urbanizou (metade dos brasileiros vivia em cidades em 1964; duas
décadas depois, eram mais de 70%) mas também se tornou mais dinâmica e
complexa. Metrópoles cresceram de modo desordenado, ensejando problemas agudos
de circulação e segurança.
O regime passou por fases diferentes, desde o
surto repressivo do primeiro ano e o interregno moderado que precedeu a
ditadura desabrida, brutal, da passagem da década, até uma demorada abertura
política, iniciada dez anos antes de sua extinção formal, em 1985.
As crises do petróleo e da dívida externa
desencadearam desarranjos na economia, logo traduzidos em perda de apoio,
inclusive eleitoral. O regime se tornara estreito para uma sociedade que não
cabia mais em seus limites. Dissolveu-se numa transição negociada da qual a
anistia recíproca foi o alicerce.
Às vezes se cobra, desta Folha, ter apoiado a
ditadura durante a primeira metade de sua vigência, tornando-se um dos veículos
mais críticos na metade seguinte. Não há dúvida de que, aos olhos de hoje,
aquele apoio foi um erro.
Este jornal deveria ter rechaçado toda
violência, de ambos os lados, mantendo-se um defensor intransigente da
democracia e das liberdades individuais.
É fácil, até pusilânime, porém, condenar
agora os responsáveis pelas opções daqueles tempos, exercidas em condições tão
mais adversas e angustiosas que as atuais. Agiram como lhes pareceu melhor ou
inevitável naquelas circunstâncias.
Visto em perspectiva, o período foi um longo
e doloroso aprendizado para todos os que atuam no espaço público, até atingirem
a atual maturidade no respeito comum às regras e na renúncia à violência como
forma de lutar por ideias. Que continue sendo assim.
Fonte:
Brasil
247.